Quando li a notícia pela primeira vez, desconfiei. Não propriamente porque pudesse tratar-se de uma notícia falsa (neste tempo em que proliferam as fake news), mas porque pudesse haver nela algum exagero, ou um enfoque algo parcial e pouco rigoroso. Isso sucede, por vezes, em sítios de notícias muito focados em questões delimitadas (single issues). A notícia era a de que um canal de televisão francês havia sido condenado numa multa de cem mil euros por nele se ter afirmado que o aborto era a principal causa de morte no mundo inteiro. Parecia-me incrível este suposto atentado à liberdade de expressão.

Foi certificar-me e a notícia nada tinha de exagerado; era mesmo assim. A Autorité Française de Régulation de la Comunication Audiovisuelle et Numérique — ARCOM (equiparável à nossa Entidade Reguladora para a Comunicação Social – ERCS), por decisão de 13 de novembro de 2024, condenou o canal de televisão CNews numa multa (ou coima) de cem mil euros, por no programa “En Quête de l`Esprit” emitido a 25 de fevereiro deste ano, se ter afirmado, com base em dados da O.M.S e da infografia do Instituto Worldometer, que o aborto é a primeira causa de morte no mundo (setenta e três milhões em 2022), mais do que o cancro ou o tabaco. Essa afirmação seria contrária ao dever de honestidade e rigor no tratamento da informação, porque o embrião e o feto não são considerados pessoas jurídicas e porque a O.M.S. não encara o aborto desse modo. A decisão está acessível no sítio dessa entidade francesa.

Em reação a tal condenação, houve, naturalmente, quem salientasse como, seguindo essa lógica, muitas condenações deverão esperar todas as pessoas que em todo o mundo combatem a prática do aborto precisamente porque ela representa uma causa de morte do embrião ou do feto. É isso mesmo, e nada mais, que move essas pessoas, cristãs de várias denominações ou não cristãs.

E é precisamente o dever de rigor e honestidade que leva a considerar que o aborto representa um atentado contra uma vida humana (não de qualquer outra espécie, certamente), uma vida que é distinta do corpo da mulher. Falsa (verdadeira fake news) é a afirmação de que está em causa o direito da mulher ao seu corpo (um slogan dos anos sessenta do século passado, tão contrário aos dados científicos mais elementares que parecia superado, mas que agora se vê retomado por políticos dos mais influentes), como se da eliminação de um qualquer órgão do corpo se tratasse. E também não é nem rigoroso, nem honesto, falar em interrupção da gravidez (IVG), como se esta fosse apenas interrompida e pudesse ser retomada sem atentar contra a vida do embrião ou do feto (que com o uso dessa expressão é ignorado, como se não existisse).

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Pode considerar-se que a vida do nascituro (embrião ou feto) não é merecedora de proteção nos mesmos termos em que o é a vida da pessoa já nascida. Mas não é honesto ou rigoroso dizer que não se trata de uma vida humana ou que o aborto não elimina essa vida.

O facto de a lei só atribuir personalidade jurídica com o nascimento também não significa que só nessa altura possa falar-se em vida humana. Por isso, há quem defenda a alteração da lei de modo a que a personalidade jurídica se adquira com a conceção. Mas mesmo que se mantenha a aquisição da personalidade jurídica com o nascimento, tal regra não pode negar o direito a nascer, que será o direito a adquirir personalidade jurídica (direito que não pode, obviamente, depender do próprio nascimento), um direito que é pressuposto de todos os outros direitos.

O que impressiona ainda mais é o que significa esta condenação: a vontade de silenciar quem se oponha ao aborto como atentado contra a vida humana. É a própria liberdade de expressão que está em causa. Ainda me recordo da propaganda que associava a legalização do aborto ao valor da tolerância, porque com essa legalização «ninguém era obrigado a abortar». Já então se esquecia, com essa argumentação, que o nascituro era, certamente, obrigado a sofrer o aborto. Mas agora parece que é proibido afirmar que o aborto é um atentado contra a vida humana. Veja-se a legislação que, em vários países, pretende proibir qualquer manifestação de oposição ao aborto (mesmo que de forma pacífica e não ofensiva, mesmo que de uma oração em silêncio se trate) em zonas próximas dos locais onde ele se pratica. Onde está agora a tolerância?

Outro sinal de intolerância é a vontade de eliminar a questão do aborto da habitual discussão de política legislativa própria de uma democracia pluralista. Nesse sentido vão as propostas (que também já chegaram a Portugal) de incluir o suposto direito ao aborto entre os direitos constitucionalmente garantidos (esquecendo, também aqui, que de um atentado ao princípio constitucional da inviolabilidade da vida humana se trata). Pretende-se que a legalização do aborto seja um dogma indiscutível.

Ainda a tal não chegamos em Portugal, mas parece que para aí caminhamos. Como se viu recentemente, qualquer remota hipótese de limitar o acesso ao aborto é liminarmente rejeitada, como se nem sequer pudesse ser discutida.

Pelo contrário, sucedem-se os projetos de cada vez maior acesso ao aborto, com o alargamento dos prazos de gestação, como as que estão agora em debate no Parlamento português (agora de dez para doze ou catorze semanas, amanhã talvez ainda mais, como noutros países). Projetos que também limitam o direito de objeção de consciência dos profissionais de saúde, que poderão, em casos limite, ser obrigados a praticar o aborto contra a sua consciência. Onde está agora a tolerância?