Nos dias de hoje é impossível escrever ou falar, com seriedade e nuance, sobre o tema Israel/Palestina sem sermos instantaneamente invadidos por reacções incendiárias, na maior parte das vezes por pessoas ou movimentos, sem qualquer conhecimento do conflito ou compreensão da realidade no terreno. Em Portugal, a equação Israel/Palestina serve apenas para distinguir a extrema-esquerda do resto do espectro político mais à direita, como se a adesão a determinado partido político implicasse um ‘pague 1, leve 2’ ou, por outras palavras, ‘se votas BE ou PCP, faz do ataque a Israel o bastião da esquerda anti-imperialista.’

Pouco importa compreender a complexidade histórica do conflito em todas as suas dimensões políticas, territoriais, sociais, culturais e religiosas. Pouco importa compreender as causas das sucessivas guerras, os ciclos de violência instigados por ambas as partes, as tentativas de reconciliação, as negociações de paz falhadas, as narrativas irreconciliáveis com que cresceram Palestinianos e Israelitas. Pouco importa compreender como chegámos até aqui.

O que interessa é contribuir para exacerbar o maniqueísmo do conflito, simplificar a mensagem, criar sound bites fáceis de interiorizar.

Esta visão maniqueísta tem ressurgido na praça pública com os sucessivos apelos de forças da esquerda e pasme-se, da SOS racismo, ao boicote da participação do concorrente Português Conan Osiris no Festival da Eurovisão em Israel. Coitado do Conan Osiris, ninguém o avisou que tinha de tirar um curso intensivo em geopolítica do médio-oriente para poder tomar uma decisão informada e esclarecida sobre se deve ou não participar no Festival da Eurovisão no Estado de Israel.

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Sejamos claros: sou da opinião que atendendo ao status quo que vivemos – um processo de paz paralisado há mais de uma década – a condenação a Israel e à liderança de Benjamin Netanyahu, como uma das partes do conflito, não só é legítima como necessária. A ocupação militar Israelita em territórios na Cisjordânia constitui um DOS sérios obstáculos à Paz que não pode ser subestimado assim como o desenvolvimento gradual dos colonatos compromete efectivamente a viabilidade de um futuro Estado Palestiniano e a solução de Dois Estados, a meu ver a única viável para a região e para a sobrevivência do Estado de Israel.

Creio também que a política desenvolvida pelo Primeiro-Ministro Israelita nos últimos dez anos, assim como as sucessivas coligações e alianças à direita, têm agravado a situação para o País, para as minorias, para a população árabe e palestiniana, para a liberdade de expressão, e sobretudo para a perspectiva de paz a longo prazo. Criticar Israel e a actuação do seu governo assim como a política de continuada ocupação é legítimo e não deve ser sinónimo de anti-semitismo, todos devem ter liberdade de o fazer sem temerem o rótulo de ‘anti-semita’.

Mas diante de apelos inflamados ao boicote de Israel, importa desmistificar o seguinte:

O boicote à participação no Festival da Eurovisão em Israel nada tem a ver com a crítica legitima à política de um Estado. Não estamos a legitimar um evento cultural num colonato ou produtos originários dos territórios ocupados, nem tão pouco um governo, mas sim o festival da Eurovisão que é por princípio um evento musical e não-político. Admito, até, que se façam apelos ao boicote de determinados chefes de Estado, governos e partidos, embora se o fizermos convém aplicar o princípio da coerência e da honestidade intelectual. Estes movimentos não se manifestam quando membros do governo Português não só reúnem com chefes de Estado, como se deslocam a países, que violam os mais básicos direitos humanos, que restringem a liberdade de expressão, que aprisionam ou condenam à morte defensores dos direitos humanos e dissidentes políticos. Não. Então porque devemos condenar a sociedade civil Israelita ao isolamento? Não estaremos a passar da crítica à política de um Estado para a discriminação de um povo?

Quando vejo estas manifestações inflamadas, que mais do que motivadas por uma vontade de defender o povo palestiniano, são carregadas de ódio contra Israel, fico perplexa com a amálgama de conceitos que é feita para justificar posições. A confusão é tal que quando falam de ‘apartheid Israelita’ ou de ‘regime Sionista’ fico sempre na dúvida se se referem ao território ocupado na sequência da guerra dos 6 dias, em 1967, ou à própria existência do Estado de Israel que data de 1948. Estes movimentos e todos aqueles que se manifestam em apoio ao boicote confundem a distinção entre o Israel democrático e internacionalmente reconhecido, com o território ocupado além da Linha Verde. Pervertem propositadamente, ou por pura ignorância, o significado de Sionismo que mais não é do que a defesa da autodeterminação do povo Judeu e o estabelecimento de um Estado Judaico em Israel.

Os que estes defensores do boicote ignoram é que tanto em Israel, como na Diáspora Judaica organizada, coexistem uma diversidade de opiniões e posições relativamente ao conflito Israelo-Palestiniano e à ocupação militar na Cisjordânia, que vão da extrema-direita à extrema-esquerda, que vão de uma defesa acérrima da política conduzida por Benjamin Netanyahu a uma oposição visceral à ocupação e à violação de direitos humanos de Palestinianos. Quase todas estas organizações da sociedade civil em Israel e na Diáspora Judaica, defensoras ou opositoras, são sionistas, desde o conhecido AIPAC, ao Jstreet e ao B’tselem (esta última conhecida por denunciar violações de direitos humanos nos territórios ocupados) na medida em que todos defendem a existência do Estado de Israel e o direito à autodeterminação do povo judeu.

O que não é claro do movimento que apela ao boicote é se defende o fim da ocupação e dos colonatos ou o fim do Estado de Israel. Se podemos estar de acordo quanto ao primeiro, não podemos tolerar o segundo.

Recentemente, o colunista Rui Tavares escreveu no público o artigo “se até tens amigos negros pergunta-lhes”, a propósito do racismo em Portugal e de todos aqueles que se apressam a dar a resposta por eles, no alto da sua (falta de) experiência. Lanço o mesmo desafio aos movimentos que se apressam a diabolizar Israel e apelar ao boicote: “Se até tens amigos judeus ou Israelitas pergunta-lhes o que é o sionismo, o que é o anti-semitismo, o que pensam do conflito, de Israel e da Palestina. Em vez de eleger o único judeu ou Israelita que legitima o teu ponto de vista, tira tempo para compreender e discutir as diferentes perspectivas da esquerda à direita e a diversidade de vozes que coexistem no terreno. Talvez te surpreenda.”

Assessora para a Inclusão, o Diálogo Intercultural e a Acção Social no Gabinete de Vereação do PSD na Câmara Municipal de Lisboa