1 Muitos comentadores têm dito o óbvio: a acusação da Operação Lex coloca em causa a credibilidade dos tribunais devido às imputações que o Ministério Público faz a um ex-presidente da Relação de Lisboa (Luís Vaz Neves) e a dois juízes desembargadores (Rui Rangel e a sua mulher Fátima Galante). E ainda há mais dois desembargadores (Orlando Nascimento e Rui Gonçalves) sob investigação.
Os factos ainda terão de ser provados pelo Ministério Público em tribunal, os arguidos gozam (e bem) da presunção de inocência mas as imputações que constam da acusação da Operação Lex têm um impacto direto em princípios basilares do nosso sistema judicial: a independência dos juízes e o juiz natural.
Contudo, temos de comparar a forma como o sistema judicial reagiu à Operação Lex com as práticas seguidas há 23 anos com o chamado caso Patuleia. É que os dois casos têm em comum o casal Rangel/Galante, sendo certo que apenas Fátima Galante foi acusada de corrupção mas Rui Rangel tudo fez para que a sua mulher fosse protegida pelo sistema judicial. Um pequeno exercício de memória — quando tantas vezes a comunicação social é criticada por alegadamente não a ter — é o que precisamos de fazer.
2 Como pode ler aqui num trabalho que assinei com o Miguel Santos Carrapatoso em fevereiro de 2018, a então juíza de direito Fátima Galante foi acusada de corrupção em 1997 por alegadamente ter aceite vender uma decisão judicial a troco de 10 mil contos (cerca de 50 mil euros). O caso assentava numa denúncia que o advogado Gouveia Fernandes tinha feito na Polícia Judiciária (PJ) logo a seguir à abordagem do solicitador Hernâni Patuleia, que lhe prometia ter influência junto da juíza Fátima Galante numa providência cautelar interposta pelo advogado.
O que se seguiu, contudo, foi o oposto do que é suposto num verdadeiro sistema de justiça. O Ministério Público acusou Patuleia de corrupção ativa para ato ilícito e Galante de corrupção passiva para ato ilícito devido a uma alegada contrapartida de 15 mil contos (cerca de 75 mil euros) por um acórdão ‘à medida’ mas o processo foi separado em dois com resultados diametralmente opostos:
- O corruptor ativo (Patuleia) foi pronunciado para julgamento na primeira instância (no famoso Tribunal da Bora Hora) e condenado a uma pena de três anos de prisão por corrupção ativa na forma tentada. A pena foi suspensa devido aos mais de 80 anos do solicitador e transitou em julgado.
- A alegada corruptora passiva (Galante) nem sequer chegou a ser julgada, visto que os desembargadores recusaram-se a pronunciá-la.
- Ou seja, o solicitador foi condenado e a juíza absolvida perante a mesma prova. Ao fim e ao cabo, era esse o objetivo essencial da separação dos processos.
Pior: Fátima Galante contra-atacou e colocou uma ação cível contra Gouveia Fernandes, um seu sócio e os jornalistas do Independente que revelaram o caso e ganhou uma indemnização de 50 mil euros atribuída pelas Varas Cíveis de Lisboa — o tribunal onde Galante trabalhava. E ainda colocou uma queixa-crime contra Dias Borges, o procurador-geral adjunto que a acusou.
Resumindo e concluindo: a juíza Fátima Galante foi protegida com unhas e dentes pelo sistema judicial que até lhe fez o favor de a ajudar a vingar-se de quem tinha ousado denunciá-la. Só em 2011 é que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reparou parte desta injustiça ao condenar o Estado português a indemnizar Gouveia Fernandes e o seu sócio em 41.500 euros.
3 Saltemos para a Operação Lex. O que aconteceu a partir do momento em que o Departamento Central de Investigação e Ação Penal extraiu uma certidão para os serviços do Ministério Público (MP) no Supremo Tribunal de Justiça investigar os desembargadores Rui Rangel e Fátima Galante? Os magistrados foram efetivamente investigados durante quatro anos e foram formalmente acusados na semana passada de crimes graves como, entre outros, corrupção passiva, fraude fiscal, branqueamento de capitais e abuso de poder.
Mais importante do que isso: o que aconteceu antes da acusação ter sido formalmente deduzida pelo MP? O Conselho Superior da Magistratura abriu um inquérito disciplinar, solicitou informação aos autos do processo criminal, converteu rapidamente o inquérito em processo disciplinar e decidiu expulsar Rui Rangel da magistratura e determinar a reforma compulsiva de Fátima Galante ainda antes da acusação ter sido deduzida.
Ao contrário do que aconteceu nos anos 90, o órgão de gestão e disciplinar dos juízes foi o primeiro a querer esclarecer rapidamente a responsabilidade disciplinar dos factos em questão na investigação e agiu em conformidade. Ou seja, não existiu qualquer proteção corporativa de Rui Rangel ou de Fátima Galante. Nem de Luís Vaz das Neves nem de Orlando Nascimento — que foi obrigado a demitir-se por pressão direta de Joaquim Piçarra, presidente do Supremo Tribunal de Justiça que foi vital em todo esse processo.
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Mais: a Associação Sindical dos Juízes enfrentou de frente o problema, em vez de enterrar a cabeça na areia. Reconhecendo a extrema gravidade dos factos contidos na Operação Lex, a direção liderada pelo desembargador Manuel Ramos Soares avançou com propostas corajosas que visam aumentar significativamente o escrutínio interno dos juízes. Dessas destaco apenas quatro:
- Criação de um canal formal para denúncias (semelhante à página da Procuradoria-Geral da República para a denúncia de ilícitos criminais) de comportamentos suspeitos de juízes. Seja de alegadas manifestações de riqueza incompatíveis com os salários das respetivas categorias dos magistrados, seja por decisões suspeitas.
- Suspensão preventiva de funções após a constituição de arguido ou à instauração de processo disciplinar e suspensão automática em caso de acusação e até à conclusão do processo
- Auditoria das declarações de rendimentos que os juízes já estão obrigados a entregar por lei do ano passado.
- Criação de mecanismos que impeçam o regresso aos tribunais de juízes que saíram para cargos políticos, empresariais ou até em clubes desportivos e maior rigor em autorizar comissões de serviços para esses cargos
São boas ideias que devem ser analisadas pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo Governo.
5 Apesar de pensar que há uma evolução claramente positiva do caso Patuleia para a Operação Lex, isso não significa que desvalorizo o corporativismo que costuma caracterizar a Justiça.
Basta referir o caso do procurador Orlando Figueira — que foi condenado na Operação Fizz em dezembro de 2018 a uma pena efetiva de seis anos e oito meses de prisão em primeira instância pelos crimes de corrupção passiva na forma qualificada, branqueamento de capitais e violação do segredo de justiça. Este é um caso de proteção ostensiva do Conselho Superior do Ministério Público, pois desde há quase quatro anos que o respetivo processo disciplinar foi colocado ‘na gaveta’ com o argumento de que tem de se esperar pela decisão sobre os recursos penais.
E o recurso não anda nem para a frente nem para trás. Há mais de um ano e meio que os tribunais superiores estão a analisar a competência para apreciar os recursos de Figueira e de outros arguidos.
A procuradora-geral Lucília Gago devia ser proativa neste caso e, tal como o conselheiro Joaquim Piçarra deu o exemplo no Conselho Superior da Magistratura, também a líder do MP devia sensibilizar órgão disciplinar do MP a tomar uma decisão a curto prazo.
Isto porque quanto mais depressa o sistema judicial reagir às suspeitas graves que recaem sobre magistrados, mais depressa reconquista a credibilidade e o respeito dos cidadãos.
Artigo corrigido sobre a pendência do recurso de Orlando Figueira no Tribunal da Relação de Lisboa. Está pendente um recurso no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para decidir qual será o tribunal competente para decidir o recurso da condenação decidida pela primeira instância: o Tribunal da Relação de Lisboa ou o próprio STJ, atendendo que Figueira voltou a ser magistrado do Ministério Público.
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