No Público do passado dia 27 de Maio, dizia-se que, “apesar de já terem alta clínica, a 17 de Março deste ano, 853 pessoas mantinham-se internadas nos hospitais”, por uma razão tão prosaica como cruel: pura e simplesmente não têm para onde ir!

Esta desgraça humanitária expressa a insuficiência do Estado social.  É verdade que há estruturas oficiais encarregues do acompanhamento destes casos, nomeadamente a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI) e as Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPI). Infelizmente, estas entidades não são capazes de dar solução a todos os casos e, por isso, “o tempo médio de permanência no hospital, após a alta, é superior a um mês”. Este drama atinge sobretudo as pessoas com mais idade: 77% das pessoas abandonadas nos hospitais têm mais de 65 anos.

Que perto de mil cidadãos portugueses, quase todos de idade avançada, sejam abandonados nos hospitais é, sem dúvida, dramático. Muitas dessas pessoas já não têm capacidade para viverem sozinhas e, por isso, não se justificando o seu internamento hospitalar, precisam de ser acolhidas por parentes, ou então por alguma instituição social. A maioria destes 853 cidadãos terá, decerto, algum familiar – filhos, netos, irmãos, sobrinhos, etc. – que não pode, ou não quer, socorrer alguém que já não precisa de estar internado, mas que também não pode viver só.

Como afirma Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), “com o ritmo actual de vida, as famílias não têm capacidade para cuidar dos mais novos e dos mais velhos ao mesmo tempo. As políticas públicas servem para resolver os problemas das pessoas. Faz sentido novas políticas que garantam respostas integradas.” É verdade que a família média vive numa casa com poucas assoalhadas e, trabalhando fora os dois membros do casal, não pode prestar o apoio que uma pessoa de idade necessita. Também é certo que nem todas as famílias têm disponibilidade, material e humana, para receber um parente mais necessitado, sobretudo se o seu estado exige uma assistência permanente. Mas também há muitas pessoas que vivem em lares por causa do alheamento dos seus mais próximos familiares. Estranho paradoxo: legaliza-se a eutanásia e criminaliza-se o abandono de animais, mas não o dos membros mais velhos e necessitados da própria família!

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Durante alguns séculos, foram numerosos os casos de recém-nascidos enjeitados, que eram entregues na roda dos expostos, cabendo às instituições de caridade, sobretudo conventos religiosos, o encargo de acolher e educar as crianças rejeitadas pelos progenitores, que eram depois encaminhadas para amas, ou para famílias em que pudessem ser recebidas. Hoje, no princípio do terceiro milénio, embora ainda existam casos de recém-nascidos enjeitados, é mais grave o drama dos idosos abandonados, muitas vezes em lares para a terceira idade. Estas instituições são, sem dúvida, a solução possível para quem não tem família, mas não podem servir de expediente para que nelas sejam depositados os mais velhos, por desinteresse de quem os devia cuidar.

Nas antigas culturas, nomeadamente a africana, a ancianidade é valorizada: os mais velhos são venerados pelos restantes membros da sociedade, porque a sua idade e experiência são encaradas como uma mais-valia social. O Cristianismo foi buscar a essa tradição o nome que atribui aos seus sacerdotes: presbítero quer dizer ancião. Da mesma forma como merecem reverência aqueles que receberam o carácter sacerdotal, devem ser respeitados os mais velhos. Pelo contrário, a sociedade moderna tende a considerar a vida humana em termos de eficácia e, por isso, os idosos são tidos por descartáveis e confinados em residências que, por vezes, de lar só têm o nome.

Ao Estado cabe a missão de promover a resposta mais digna e humana: a permanência das pessoas da terceira idade na própria família, através de incentivos fiscais e de condições que viabilizem esta solução. A Segurança Social, da mesma forma como só permite a institucionalização de menores quando não é possível a sua permanência numa família, de origem ou de acolhimento, podia fazer outro tanto em relação aos mais velhos. A institucionalização dos anciãos só deveria acontecer quando seja impossível garantir a sua permanência na família.

É sabido que “as regiões de Lisboa e Vale do Tejo e a do Norte são responsáveis por cerca de 75% do total de internamentos inapropriados” e que é expectável que, “à medida que a oferta cresce, o número de pacientes referenciados também aumente”. Ou seja, este problema, devido ao envelhecimento da população, tende a agravar-se. São, portanto, urgentes as políticas sociais que permitam a inserção familiar das pessoas mais velhas, nomeadamente pelo reconhecimento de algum familiar como seu cuidador, proporcionando-lhe, para esse efeito, a adequada formação. São também necessárias medidas que permitam às famílias o acolhimento, no seu domicílio, de uma pessoa mais velha, nomeadamente pelo acesso privilegiado a casas idóneas para o efeito.

Mas, poderá o Estado subsidiar esses cuidadores familiares, bem como proporcionar a essas famílias de acolhimento uma habitação adequada a essas necessidades? É verdade que estas políticas sociais têm custos elevados, mas não se pode ignorar que, para além do elevadíssimo preço humano de uma política de descarte dos anciãos, “o impacto financeiro dos internamentos inapropriados a 17 de Março [deste ano] era de 16,3 milhões de euros (incluindo também as unidades psiquiátricas). Um valor que extrapolado a um ano, considerando a mesma demora média, ascenderia a 100 milhões de euros”. Ou seja, se o Estado canalizasse, por hipótese, metade dessa verba para o apoio das famílias que aceitem acolher uma pessoa de idade, poderia eventualmente poupar, anualmente, outro tanto, em internamentos inapropriados.

A descristianização da sociedade acarreta a sua desumanização, de que é expressão dramática o abandono das pessoas mais velhas. Quando uma senhora de idade foi deixada, pela própria família, na urgência hospitalar e, só mais de um mês depois de ter alta, a foram buscar, o médico responsável pelo serviço chamou a atenção para a desumanidade dessa conduta. Para seu espanto, ouviu da filha da pessoa abandonada esta incrível resposta: ‘O problema da minha mãe é que não tem família!’ Quando alguém afirma que a própria mãe não é família, há algo de podre na sociedade! Quererá isto dizer que Portugal se está a converter num país de órfãos de pais vivos?!

Graças à matriz cultural cristã, o povo português é, por regra, solidário: não é em vão que a maioria das instituições sócio caritativas são promovidas pela Igreja católica, que impõe aos fiéis o grave dever de honrar pai e mãe, sobretudo na doença e na velhice. Por esta razão, as ideologias xenófobas ou racistas não medram, em geral, em Portugal, habituado à convivência fraterna com povos de todas as origens, etnias e credos. Com efeito, quando se abrem as inscrições para a Missão País, é tal a afluência de universitários que as vagas, para este voluntariado social cristão, esgotam-se em poucos minutos! Também o êxito das campanhas do Banco Alimentar – mais uma iniciativa de inspiração cristã! – prova que a generosidade está no ADN nacional.

Portugal tem uma imensa dívida para com os seus maiores, sobretudo os residentes em lares, que foram também as principais vítimas desta pandemia. Já é hora de o Estado defender, não só a inviolabilidade da vida humana, desde a concepção e até à morte natural, mas também a todos garantir um fim de vida digno, se possível no seu ambiente familiar. Afinal, não há lar como a nossa casa.