No início do mês cumpriram-se 29 anos do massacre na praça de Tian’namen. Sobre o antes, durante e o logo depois deste episódio vale a pena ler o belíssimo Beijing Coma, de Ma Jian. Quem conhece os acontecimentos diz que é um relato muito próximo da realidade, apesar da evidente ficção – não fosse o narrador um jovem estudante em coma depois de atingido pela tomada da praça pelos tanques do regime depois de dias de impasse entre a liberdade e o autoritarismo.
Esta dicotomia tem estado na base das relações dos Estados Unidos e da Europa com a China. Enquanto por cá se criou a narrativa da liberdade, lá criou-se a narrativa do nacionalismo legitimador do Partido Comunista Chinês. Cada qual tirou a lição que quis da história, consoante a sua própria interpretação do mundo.
No Ocidente estávamos em momento de triunfalismo depois do fim da Guerra Fria. As ideologias do século XX tinham sido derrotadas e acreditava-se genuinamente que nada podia travar o desenvolvimento da democracia como forma natural de entendimentos entre as sociedades. Assim, a política externa das grandes potências consubstanciava-se na ideia de que a segurança internacional poderia ser preservada caso se desse um empurrãozinho institucional.
A questão de Tian’namen foi por isso interpretada como o primeiro sinal de que a China, mais tarde ou mais cedo, se democratizaria. Corriam reformas económicas desde 1979 (como tinham ocorrido na União Soviética) e a sociedade civil estava a cumprir a sua missão: levantar-se contra o regime comunista. O futuro só traria outros levantamentos idênticos já que a classe média tenderia a crescer e a reclamar mais liberdade. Num instantinho, mais coisa menos coisa, a China ia tornar-se um estado liberal.
Em Pequim, estudava-se afincadamente os erros da União Soviética e as razões do seu colapso. Percebeu-se rapidamente que era necessário mudar alguma coisa para evitar o mesmo destino, e isso compreendia (depois da reformas económicas que já tinham sido postas em movimento há uma década) criar uma nova forma de legitimidade. Os ingredientes não tardaram a aparecer e nem sequer foram muito originais. O governo concentrou-se em três elementos: a criação de uma identidade pós-marxista, o uso do sucesso económico para libertar milhões de chineses da pobreza e alargar consideravelmente a classe média e a conceção discreta de liberdades sociais misturadas com uma dose generosa de clientelismo. O resultado é que hoje a população não contesta o regime e parece satisfeita com a narrativa e as concessões que recebeu. E especialmente com o aumento acentuado dos seus rendimentos.
Apesar dos sinais que vinham de Pequim – é certo que não em abundância, que a China era um estado que se resguardava dos olhares externos – as esperanças transatlânticas não se ficaram por aí. Quando o crescimento chinês se evidenciou, as vozes do mundo ocidental apressaram-se a tirar uma de duas conclusões: ou a já conhecida ideia que Pequim se estava a integrar na ordem económica ocidental e que o crescimento económico da China só traria benefícios ao mundo, uma vez que Pequim se tornaria, inevitavelmente, um “ator responsável”, ou então explicava-se que o mesmo crescimento era insustentável, tendo em conta o regime (que teimava em não mudar), a insustentabilidade de um aumento tão acelerado de todos os indicadores económicos (mais que muitos) e que a China ainda teria que lidar com uma série de separatismos hostis. Além disso, o poder militar chinês, aquele que verdadeiramente interessa, estava a anos-luz do dos Estados Unidos.
A China sorriu ao ocidente e continuou o seu caminho. Com firmeza e determinação. Desenvolveu um regime interno sólido e legítimo aos olhos da população – com problemas, é certo, mas que regime não tem problemas? – com um sistema económico de “capitalismo de estado” e dando início a uma estratégia inédita nas relações internacionais: construiu aquilo a que hoje muitos autores chamam “império económico”. Em poucas palavras, há um conjunto alargado de países dependentes de Pequim para a sua sobrevivência, e outros tantos que venderam os sectores-chave da sua economia a empresas chinesas, ou seja, ao estado que tutela toda a atividade empresarial.
Tudo isto aconteceu paulatina e discretamente. Primeiro, nos anos 1990 e 2000, através do investimento massivo em países em vias de desenvolvimento em África. As modalidades eram variadas e iam desde o investimento em infraestruturas, à viabilização de estados em falência técnica. Não há almoços grátis, mas a China cobrava um preço inofensivo – abrir portas à influência política – relativamente às instituições ocidentais que exigiam mudanças políticas profundas no sentido da boa governança e da liberalização económica (de resto, com resultados muito ambivalentes).
A estratégia estendeu-se à América do Sul, rica em matérias-primas. A estes países a China também ofereceu uma alternativa comercial a estados insatisfeitos com a sua dependência excessiva dos Estados Unidos. Pelos menos aparentemente é mais fácil lidar com um estado distante com uma folha de memórias históricas limpa do que com um vizinho gigante relativamente ao qual há ressentimentos e cuja dependência implica a sujeição a exigências mais ou menos toleráveis.
Como seria de esperar, a influência e económica (e neste caso também política) também se dirigiu, ainda que de forma mais equitativa, aos vizinhos asiáticos. A China aí funcionou, essencialmente, usando a interdependência económica, mais uma vez como meio de atingir fins políticos. Afinal a China é um gigante. Terá sido apenas no início dos anos 2010 que terá havido, até certo ponto, necessidade de travar Pequim pelos meios certos. O presidente Obama terá pensado que a única forma de evitar o crescimento económico de Pequim era mesmo criar um acordo de comércio livre que excluísse o gigante asiático. Mas chegou tarde demais. Em 2017, Pequim era já o maior exportador mundial e o segundo maior importador (com uma balança comercial muito favorável); em 2014 tornou-se a maior economia em termos de paridade de poder de compra, e, dizem especialistas, que é uma questão de (pouco) tempo para se tornar a maior economia do mundo.
Quando demos por isso, a economia imperial já era um dado global. A China tinha transformado os BRICS de um fórum informal numa organização política (informal também) disposta a trabalhar a criação de um sistema internacional multipolar, titular de um Banco de Apoio ao Desenvolvimento destinado a formalizar as condições chinesas no apoio ao desenvolvimento – muito diferentes das ocidentais (mas com fundos de estados como o Reino Unido). Já tinha posto na mesa o projeto das novas Rotas da Seda (terrestre e marítima), que passam literalmente por meio mundo. Já gastava cerca de 12% por cento do PIB em defesa, especialmente em meios navais, para defender (ou talvez mais qualquer coisa) o estreito de Malaca e o Mar do Sul da China.
Agora como se não bastasse, Xi Jinping ganhou uma espécie de passe vitalício para a liderança do PCC, para poder implementar o “Grande Rejuvenescimento Chinês” – um plano simultaneamente interno e externo de enriquecimento nacional de expansão económica internacional. Além disso, aproveitando o protecionismo de Trump, autoproclamou-se líder da ordem económica liberal, em Davos, em 2017. Na realidade não era preciso dizê-lo. Os indicadores acima mostram que cada vez mais Pequim é um líder por direito próprio. Mas não vale a pena imaginar que os liberais ocidentais tinham razão. A ordem económica chinesa é diferente e é, acima de tudo, um instrumento político que cria condições para Pequim ter profundo impacto em decisões de outros estados e influenciar de uma forma determinante as relações internacionais. E tudo isto aconteceu quando o ocidente andava distraído.
Quando se lê de uma forma séria e desapaixonada sobre a China percebemos que a nossa perceção de Pequim desde 1989 esteve errada. E parece que estamos a voltar ao mesmo. Muitos ainda dizem que a China pouco pode contra o poderio norte-americano. Talvez. Mas vale a pena lembrar que nos anos 1990 a nossa ingenuidade política podia ser explicada pelas nossas lentes ideológicas liberais (a nossa crença de que não havia verdadeiramente forma de enriquecer e manter um crescimento económico estável se o regime não fosse democrático); que nos anos 2000 podia explicar-se pela nossa surpresa e dificuldade em acreditar que o crescimento económico chinês tenderia a consolidar-se. Agora, depois de quase quatro décadas de incremento, consolidação e expansão económica internacional, não acreditar que Pequim veio para ficar como um importante ator no sistema internacional só pode ser uma ilusão. E as ilusões dão sempre maus resultados políticos.