Uma das promessas de campanha do candidato Joe Biden foi a de organizar uma cimeira para a democracia no primeiro ano de mandato. Cumpriu a queimar os prazos; o evento internacional teve lugar, virtualmente, a 9 e 10 de dezembro. Quando este artigo foi escrito ainda não havia resultados, mas é possível que sejam magros. Os mais de 100 chefes de estado participantes – e, mais importante ainda, convidados – debateram três temas que já constavam da agenda pré-presidência: a defesa contra o autoritarismo, a luta contra a corrupção e a promoção do respeito pelos direitos humanos. Cimeiras destas, que reúnem chefes de estado, empresários e sociedade civil são relativamente frequentes, desde Bill Clinton. O seu carácter não vinculativo torna-as encontros relativamente fáceis e são especialmente apreciados por ativistas de países autocráticos que ganham espaço para fazer as suas queixas.

No entanto, esta Cimeira, comparada com as anteriores, tem diferenças assinaláveis.

A primeira é evidente. O mundo democrático já perdeu a ilusão, ainda palpável nas últimas cimeiras (interrompidas por Trump), de que a China com o seu desenvolvimento económico criaria uma classe média que reclamaria liberdades. Agora sabe-se que não só o capitalismo de estado é uma das vias de legitimidade do regime de Xi Jinping, como se sabe que Pequim tem aspirações a poder global.

Assim, esta cimeira reveste-se de um novo significado, relacionado com o sistema internacional: decorre uma transição de poder e a administração Biden quer provar que o sistema democrático é superior ao autocrático e que as regras do jogo da política internacional devem continuar a ser escritas no espírito liberal. Estando esta possibilidade em jogo – como, aliás, o presidente dos EUA disse no discurso inaugural – esta Cimeira, que terá réplica avaliativa daqui a cerca de um ano, é um momento simbólico de afirmação do papel de Washington no mundo e uma prova de energia diplomática dos estados democráticos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em segundo lugar, e nesta linha de raciocínio, a Cimeira foi um sucesso ainda antes de acontecer. Nos dias precedentes, Pequim lançou uma campanha que visava denegrir a “democracia de estilo americano”, movida por interesses económicos e sem conteúdo nenhum, “dado o facto da sociedade americana ser caótica”. Mais, acusou a democracia americana de ser um tipo de regime que não conduz à “solidariedade global, à cooperação global e ao desenvolvimento”, que só levou a uma “exportação desse tipo de democracia” que prejudicou o mundo, enquanto a “democracia socialista com características chinesas” é um projeto político que leva à paz e à prosperidade. Pequim sente-se evidentemente acossada, o que mostra que a bipolarização ideológica do conflito de transição de poder entre os EUA e a China, protagonizada por Biden, está a ter algum efeito.

O discurso oficial chinês podia ter razão de ser, pelo menos em parte, se tivesse ocorrido nos anos 1990 ou até nos anos 2000. Nesse momento, devido à grande concentração de poder, a húbris liberal tomou conta da única potência do sistema internacional. Os EUA cometeram um conjunto de erros estratégicos, incluindo mudanças de regime pelas armas, e a tentativa de expansão da democracia por todos os meios.

Até agora, retórica e politicamente, Biden tem vindo a recusar esse tipo de ação externa. Regressou a valores dos seus antecessores Wilson e Roosevelt para a criação de uma ordem internacional democrática inclusiva, mas separada, e de Truman para a organização da segurança coletiva relativamente às autocracias. Mas ao contrário destes antecessores, convictos da ascensão do poder americano, a administração Biden tem consciência do seu declínio. Os EUA de Biden não são a “nação indispensável”. São os “líderes do mundo livre” que não têm capacidade de vencer esta batalha pela transição de poder “sozinhos”. Esta é a terceira novidade desta Cimeira para a Democracia.

Mais, a China não tem razão quanto à rigidez do conceito de “democracia” que fez parte do ideário dos Estados Unidos no Pós Guerra Fria. Nessa fase, ser um estado demoliberal era aproximar-se o mais possível do modelo americano de democracia. Esta é a quarta diferença: a democracia para Biden é um conceito vago, sem mais qualificação que a oposição às autocracias, a luta contra a corrupção e o respeito pelos direitos humanos. É a ideia defendida por John Rawls de que as democracias e os “estados decentes” têm condições para colaborar que anima esta Cimeira. Incluí-los, aos “estados decentes”, pode mesmo ter o efeito positivo de os incentivar a liberalizar-se.

É certo que esta Cimeira tem um objetivo muito pragmático: faz parte de toda uma arquitetura internacional para conter a expansão, também ideológica, da China. E mais: é muito raro na história de coligações democráticas que elas sejam verdadeiramente puras. A geopolítica, a defesa, a segurança, a estratégia, os interesses nacionais fazem parte de qualquer construção internacional, mesmo de uma Cimeira não vinculativa. Ninguém faz política externa só com valores. Assim, é precisamente no carácter vago desta cimeira que reside a sua força. Nenhum estado convidado é alheio a esta situação. Mas, ainda assim, e porque não há obrigações inerentes, aceitaram alistar-se neste consórcio independentemente do grau de convicção. Isto também explica porque é que nem todos os estados convidados são democracias, questão que tem ocupado a imprensa internacional que condena um conjunto de convites de uma forma muito crítica. A mim, não me parece má ideia.

Há um quinto ponto, que Biden frisou no discurso inaugural da Cimeira. As democracias, principalmente as mais estabelecidas, estão a passar por dificuldades. Uma delas – disse o próprio presidente – é a americana. De facto. Sondagens recentes mostram que a tribalização sócio partidária mantém-se inalterada, o que fomenta o bloqueio das instituições democráticas, o entrincheiramento dos extremos, e a ausência de um centro que permita o diálogo e os consensos políticos. Esta Cimeira não é, como as de Bill Clinton, uma Cimeira das Democracias. É uma Cimeira para a Democracia. Para recomeçar em várias vertentes. Veremos onde este recomeço nos leva.