Em 2008, a Rússia iniciou um conflito com a Geórgia, para o controlo das regiões da Ossétia do Sul e Abecásia. Em 2014, Putin anexou a Crimeia ao território da Federação Russa, apropriando-se da região ucraniana como se esta lhe pertencesse. No mesmo ano, apoiando forças separatistas, Moscovo conseguiu que as regiões de Donetsk e Lugansk se declarassem independentes da Ucrânia, sob protecção militar de Putin. Desde 2019, a Rússia tem emitido milhares de passaportes russos para as populações dessas regiões, enraizando a sua influência e justificando a sua acção militar com a protecção desses cidadãos russos. Entretanto, enquanto a ambição expansionista do regime russo era evidente, tornara-se indisfarçável a natureza corrupta do Kremlin, ligando militares, serviços secretos, oligarcas e empresas-públicas a fluxos de milhões de dólares. Houve quem denunciasse, mas Putin não enfrentou limites à impiedosa perseguição política dos seus oponentes, tanto a nível interno como externo. Em 2006, Alexander Litvinenko, que fugira para Londres para expor a corrupção de Putin, foi envenenado mortalmente em solo britânico com uma substância radioactiva, por dois antigos membros do KGB próximos de Putin. Em 2020, Alexei Navalny, empresário que usou o seu acesso a informação de empresas-públicas russas para documentar essa corrupção, foi vítima de atentado por envenenamento, tendo sobrevivido — actualmente, está preso.
A estratégia de Putin não assentou apenas em acções sobre territórios fronteiriços e repressão política. Durante todos estes anos, Putin nunca perdeu de vista que a afirmação geopolítica do Kremlin dependeria do enfraquecimento da UE. Por isso, abraçou a China como seu parceiro privilegiado. Investiu em espionagem para monitorizar instituições e empresas europeias. Abriu os cofres ao financiamento de movimentos e partidos eurocépticos (à esquerda e à direita), percebendo que quanto mais estes crescessem mais destabilizadas ficariam as potências europeias. Tentou interferir em campanhas eleitorais de outros países, ampliando a propaganda anti-UE e colocando pelotões de hackers a disseminar desinformação pró-Moscovo. E, assim, entre as elites políticas, económicas e culturais, Putin criou aliados no coração do Ocidente que, por adesão ideológica ou oportunismo, se tornaram defensores de uma relação especial com a Rússia.
Com altos e baixos nas tensões diplomáticas, nada disto realmente impressionou os líderes políticos ocidentais, que preservaram a sua relação com a Rússia ou, em alguns casos, até a aprofundaram. Em 2017, quando se sentou na cadeira de poder do Élysée, Emmanuel Macron foi rápido a convidar Putin para encontros em Versailles e, meses depois, na sua residência de Verão. O objectivo era redesenhar a relação com Moscovo, manter um diálogo aberto e ultrapassar uma NATO “em morte cerebral”, para desenvolver interesses estratégicos franceses: em 2018, Macron assumia que França ambicionava ser o país com mais investimentos na Rússia. Enquanto isso, na Alemanha, a tolerância para com o regime de Putin foi ainda maior, sustentada na dependência do gás natural e nas lucrativas trocas comerciais, que incluíram uma polémica venda de equipamento militar para simulações de combate e treinos das tropas russas. Sem coincidência, Schröder, antigo chanceler alemão que assinou a autorização para a construção do gaseoduto Nord Stream 1, está hoje na administração da Gazprom — a empresa estatal russa para o gás. Os exemplos internacionais multiplicam-se e traduzem-se nos dados das exportações russas: em 2019, 64% do gás natural foi para a UE, assim como 50% do crude e de produtos petrolíferos. Esta interdependência foi, até agora, uma arma de Putin contra o Ocidente.
Em 2022, com a invasão da Ucrânia, tudo mudou. Os laços económicos romperam, sanções mais duras aplicaram-se e a Rússia ficou isolada. A posição forte e unânime da UE pode ser moderadamente animadora, mas ficou claro que surgiu demasiado tarde e a um custo terrível para os ucranianos e o continente europeu. Quando pensamos nos cúmplices de Putin, convém por isso não olhar apenas para os partidos dos extremos — à esquerda, os que se agarram à nostalgia do projecto soviético; à direita, os que admiram o nacionalismo e agradecem os petrodólares que financiam os seus partidos. Nas contas de cumplicidades, há que incluir os líderes das principais economias europeias, que escolheram ignorar os riscos de uma interdependência económica e energética com uma autocracia corrupta e com ambições imperialistas. Quem vende a alma ao Diabo tende a esquecer-se como pode ser dolorosa a cobrança.
Tudo isto conduz a duas lições. Primeira lição: os “valores europeus” são como os unicórnios — podem ficar bonitos no papel e soar bem nos discursos, mas na prática não se vislumbram. O facto é que, durante largos anos, a UE tem tolerado as atrocidades de Putin em nome de vantagens económicas e políticas, seguindo até estratégias de dependência energética que, no plano geopolítico, fragilizaram a segurança dos cidadãos do continente. Segunda lição: entregar sectores estratégicos a regimes autocráticos implica ficar à mercê das suas estratégias de poder, que afectam preços, autonomia política e a segurança das populações. E se esta segunda lição está hoje a ser vivida na pele pelos alemães, dependentes dos russos para o gás natural e a mãos com o impacto das sanções impostas à Rússia, talvez valha a pena pensar na encruzilhada em que se meteram Portugal e Grécia, por exemplo, vendendo-se à China. Já que não aprendemos estas lições antes, pode ser que agora fiquem assimiladas.