Não há volta a dar: economias dirigidas pelo poder político originam dívida e economias endividadas geram pobreza e caos. Independentemente disso os governos precisam de crescimento para se manterem no poder e insuflam a economia com incentivos na busca de resultados rápidos. Nas democracias, os governos fazem-no para vencer eleições; em algumas ditaduras, para os regimes se manterem de pé. Nas democracias, e apesar dos incentivos contrários como a actual política monetária do BCE e da FED, as correcções ainda se fazem mesmo que a conta-gotas. Traduzem-se em pequenas recessões, ligeiras crises que procuram adiar uma outra maior e mais grave. Nas ditaduras, essas correcções são impossíveis porque a fuga para a frente (que quando não resulta numa guerra se pode traduzir num crescimento económico ímpar e imparável) não pode ser posto em causa. Nas ditaduras só resta uma decisão e essa é continuar a andar mesmo que à beira do abismo.

A China é um país imenso, muito maior que os EUA, que a própria UE ou a Rússia. Por essa razão tem aguentado a política dirigista de Pequim. Os líderes comunistas descobriram que com um incremento da actividade económica evitariam o destino dos dirigentes da URSS. Desconheciam que o desenvolvimento económico (o se poder comprar um bem de primeira necessidade depois de já se ter outro, o querer um melhor emprego que o anterior, o se aventurar num negócio por conta própria e vê-lo crescer, em suma, o simples facto de se querer viver melhor que no passado) é um vício. As pessoas gostam de melhorar. Faz parte da nossa natureza e pouco há a fazer contra ela. Foi essa mesma natureza humana que forçou os oligarcas comunistas de Pequim a expandirem para o resto da China as políticas inicialmente previstas para as regiões especiais. Também desconheciam que quando se planeia ao milímetro a vida de milhares de milhões de pessoas, o plano não corre bem. As reacções são impossíveis de prever e as consequências desastrosas.

Cidades vazias, bancos públicos endividados a par de empresas de construção e do sector imobiliário na mesmíssima condição, dados estatísticos enganosos, corrupção ao mais alto nível, mas também nos meios intermédios e mais pequenos, obras públicas monstruosas, ineficientes e com um impacto ambiental capaz de fazer corar os ocidentais mais cépticos das alterações climáticas, declínio demográfico e uma população desejosa de mais e de melhor, a China não está preparada para uma crise económica como a que teria de atravessar para corrigir tantos erros. As notícias sobre a Evergrande, a segunda maior empresa imobiliária na China, são apenas mais um sinal negativo que a reacção de Pequim nos pode levar a pensar o pior.

Em Abril passado a China Huarong Asset Management, uma empresa estatal de gestão de activos criada para fazer face à crise financeira que atingiu a Ásia em 1997, foi intervencionada e salva pelo poder político chinês. Ora, esta não foi a decisão que Pequim tomou relativamente à Evergrande. Há quem entenda que não estamos perante uma mudança sobre o entendimento de como o Estado deve intervir nestas situações, mas que, ao contrário do que sucede com o sector bancário e financeiro, o imobiliário não é considerado estratégico e, por essa razão, os governantes em Pequim decidiram que é da responsabilidade dos poderes e empresas locais resolver problemas como o da Evergrande. Mas há uma outra leitura que também podemos fazer e que se resume num ponto: a China tem demasiadas Evergrande. O governo central não tem condições para as salvar a todas e daí procura circunscrever os fogos que vão surgindo na esperança que estes não se propaguem. Pelo menos ao mesmo tempo. Foi nesse sentido que o Banco Popular da China já veio garantir que a Evergrande é um caso isolado e que as restantes empresas imobiliárias chinesas são sólidas.

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Mas nesta crónica não quero apenas fazer uma leitura económica sobre o que se passa na China. É minha intenção deixar também um alerta sobre o modo como nos deslumbramos com o sucesso alheio, mesmo que aparente e sem base de sustentação. O Ocidente também vacilou nos anos 50 quando houve quem duvidasse se o modelo soviético não seria melhor que a economia de mercado. A URSS conseguiu a bomba de hidrogénio pouco depois dos norte-americanos, lançou com sucesso o primeiro míssil balístico, adiantou-se na corrida espacial com o Sputnik 1 e 2 e, finalmente em 1961, ao enviar o primeiro homem para o espaço. À semelhança do sucede agora com a China, na época os EUA (e o Ocidente) estavam preocupados, seriamente preocupados com o avanço tecnológico soviético que era acompanhado de alguns sucessos económicos, naturais se tivermos em conta a guerra que terminara há poucos anos. Mas isso é fácil de dizer agora porque sabemos, como é fácil avaliar as decisões de Churchill na Segunda Guerra, agora que temos a certeza que deram certo. O problema é quando se desconhece o fim da história. É nessa altura que é preciso acreditar nas vantagens do que temos: que a liberdade é um valor natural do ser humano e, como natural que é, produz melhores resultados a longo prazo. Não só uma comunidade mais rica, mas também mais saudável e sustentável onde apraz viver.

A China tem sido apontada como um gigante (que é) que vai mudar o mundo e pôr termo ao domínio ocidental (o que muito provavelmente é verdade). Mas a China não é governada por seres superiores capazes de antecipar todas as crises e de planear um país próspero e isento de problemas. Por muito grande que a China seja, por muita aptidão que os chineses tenham, não é possível que uns iluminados governem de forma satisfatória a vida de milhares de milhões de pessoas. Essa tentativa já foi feita e viu-se o que aconteceu. A própria China aplica esta receita há séculos e os resultados não foram os melhores. Não há milagres; apenas seres humanos que vivem as suas vidas.

É assim que um dos desafios que a China nos coloca não é tanto o da sua supremacia, mas o do seu possível colapso ou, quanto mais não seja, o de uma grave crise económica. A acontecer, esta alastrar-se-á às economias ocidentais, gerará convulsões sociais na China e, provavelmente, alguma instabilidade política em Pequim. Dificilmente um país com uma população em declínio entra em guerra. Historicamente, a China foi mais invadida que tentou tomar posse de territórios estrangeiros (as intervenções contra a Índia nos anos 60 terminaram logo que a China controlou o que queria, apesar de poder ir mais longe) o que nos leva a crer que dificilmente invadirá países terceiros. No entanto, uma correcção económica ao nível de um gigante como a China pode ter resultados inesperados. Além do económico, a instabilidade política pode ser o outro desafio que a China nos pode colocar nas próximas décadas.