Esta semana assinalou-se, nos Estados Unidos, uma das mais negras páginas da história americana. No dia 6 de janeiro, quinta-feira, passou um ano do assalto ao Capitólio, em que um turba de revoltosos fez cinco vítimas mortais e feriu mais de cem pessoas. Donald Trump tinha feito um discurso inflamado à frente da Casa da Democracia antes do ato criminoso e uma parte significativa dos americanos atribui-lhe responsabilidade pelo sucedido. Foi efetivamente um discurso que incitava à revolta, pelo menos em termos latos, mas, por enquanto, não foi ainda provada a ligação entre um evento e outro, ainda que os tribunais e uma equipa de investigação do Congresso estejam a fazer esforços para apurar responsabilidades. No entanto, Trump foi condenado em praça pública pela única pessoa que não podia sobrepor-se às instituições: o presidente Joe Biden.
A administração e o Congresso criaram todo um cerimonial para assinalar a data. Não parece que isso só por si constitua um problema, foi de facto um acontecimento inédito e importante – em sentido negativo – na história dos Estados Unidos da América. O que verdadeiramente me surpreendeu foi o teor do discurso de Joe Biden, o momento alto do evento. Foi um discurso com duas partes. Uma, persecutória, ligada à figura de Donald Trump e outra dirigida aos americanos, instando-os a fazer uma escolha.
Trump recebeu críticas justas. É verdade que todas as instâncias judiciais reconhecem que as eleições decorreram sem incidentes apesar de o antigo presidente continuar a dizer que foram fraudulentas. É também verdade que Trump contribuiu para uma política menos ética e na qual a verdade dos factos conta pouco. Mas é grave, e até um pouco despropositado tendo em conta o timing do discurso, que o atual presidente acuse o anterior de atentar contra a democracia, também, mas não só, através destes ataques. Sem provas.
Já a mensagem dirigida aos americanos, trocada por miúdos, foi a seguinte: neste momento, existem duas américas, uma que representa o bem, outra que representa o mal; uma que escolheu a verdade, outra que escolheu a mentira; uma que escolheu a violência e outra que escolheu as instituições. E tendo em conta esta realidade, cada americano tem de ser capaz de perceber onde está e o que quer para o seu país. Como se nada houvesse de permeio, como se as nuances não fossem uma realidade da vida.
Sem se aperceber – ou apercebendo-se – Biden adotou o mesmo tipo de discurso dos seus adversários, no qual há americanos verdadeiros e americanos não verdadeiros. Isto no contexto de um país cada vez mais polarizado e com cada vez menos vontade de se entender.
E com menos vontade de se entender porquê? Ora desde os anos 2000, os Estados Unidos passam por um conjunto de crises simultâneas: a crise financeira, que lhes roubou a esperança no futuro, a crise das instituições, nas quais os níveis de confiança bateram em mínimos históricos nos últimos anos, a crise demográfica que criou medos e ressentimentos e, mais importante do que qualquer outra, uma crise ideológica que radicalizou ambos os partidos. E, evidentemente, a crise política e social que envolveu todas as outras numa espécie de batalha campal em que não há adversários. Só inimigos que querem destruir o país.
Não há espaço para contar aqui a história das desavenças dos dois partidos que começou de forma mais sustentada nos anos 1960. Mas a parte mais recente dessa história tem início nos anos 1990, quando democratas e republicanos começaram a mudar as suas coligações, a endurecer os discurso e apostar em estratégias eleitorais de mobilização para atrair as suas bases deixando de lado as políticas de captação de novos eleitorados ou indecisos.
Os democratas, convencidos na era Clinton que a classe média era uma realidade imutável, viraram-se para eleitorados minoritários. É aqui que começa a nascer a política identitária que hoje está tão generalizada na esquerda americana. O número de adeptos desta ideologia é cada vez maior entre as elites políticas do partido. Há quem afirme que já são a maior fatia dos representantes no Congresso. Já os republicanos, com receio de que a sua coligação, maioritariamente branca, fosse engolida por americanos de outras etnias, criou uma narrativa moral e civilizacional que atraiu ativistas das alas mais conservadoras dos partido. Os radicalismos de um lado e de outro foram-se adensando e alimentando mutuamente, enquanto os políticos, ativistas e eleitores que foram sobrando eram os mais radicalizados, cada vez com mais tecnologia à sua disposição para passarem a sua mensagem. Juntamente com as estratégias de mobilização e as crises contínuas, a polarização, que como nos explica Robert Putnam no seu mais recente livro, aconteceu diversas vezes nos Estados Unidos ao longo da sua história, deixou de ser um combate de elites, passou para a sociedade e para o cidadão comum.
Joe Biden, um dos últimos moderados, foi eleito para tentar estabelecer pontes. Através da sua longa vida como Congressista, da sua experiência política, do seu conhecimento profundo dos Estados Unidos da América. Ao princípio pareceu que estava a tentar. Mas a debacle no Afeganistão roubou-lhe a popularidade quando ainda devia estar em estado de graça. Cerca de 60% dos americanos (uma parte democratas) acha que o presidente não se deve recandidatar, enquanto que Trump parece estar cheio de energia e apoios para voltar em 2024. E as eleições intercalares de novembro deste ano parecem ter todos os ingredientes para ser ganhas pelos republicanos.
Poderá ter sido este cenário negativo que levou Biden a entrar nas trincheiras da tribalização; poderá ter sido a pressão dos democratas radicais que quiseram aproveitar o momento (e o presidente) para expressarem a sua frustração contra Trump e os republicanos da forma também tribal que já nos habituaram. Seja qual for o motivo, o discurso de dia 6 põe o presidente dos Estados Unidos no único lugar onde não podia estar: no da sobreposição às instituições e no de guerreiro das trincheiras político-partidárias. A moderação levou mais um tiro no porta-aviões.
Por isto mesmo, se o 6 de janeiro de 2021 foi um golpe duríssimo na política institucional e democrática, o 6 de janeiro de 2022 não veio melhorar o panorama. Vivem-se dias difíceis na América. Vivem-se dias azedos.