1 Já se notou: é farta a quantidade de estafetas que o Presidente da República tem na “media” a correr por ele. A troco de um pedaço de açúcar — um poderoso telemóvel que zumbe de Belém, um elogio que mesmo que nunca sentido é “distinção” inesquecível; um convite para almoçar que do dia para a noite, transfigura um jornalista num comensal do Palácio, etc. Não sabemos quantos se desvanecem isto, suspeitamos que muitos, mas sabemos porém que foram poucos os que se aperceberam da ocorrência de dois factos desagradavelmente inabituais, assinados por Belém.

Facto um: o Chefe de Estado achou, digamos, natural (?) informar o país através de um programa televisivo da SIC Notícias que sim, na sua percepção das coisas, o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, o seu ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa e o chefe de gabinete de Sá Carneiro, António Patrício Gouveia, tinham sido assassinados no dia 4 de Dezembro de 1980. Ah bom? Foram? Foram porque ele, Marcelo, acha que foram? Agora, em hora quase eleitoral? O modus operandi desta intervenção presidencial permite dúvida e acalenta a estranheza. Se as famílias não mereciam um reabrir da ferida e do desgosto provocada pelo “achar” do mais alto magistrado da nação, interrogo-me sobre como se terão os portugueses confrontado com tal desabafo presidencial? Saí dos estúdios da SIC-N com a pesada dúvida sobre quem estaria mais perturbado: se eu, ao ouvir as palavras do Presidente da República, se ele, por as dizer. Ou melhor, por ter querido dizê-las.

Facto 2: o Chefe de Estado, auto-dispensando-se da maçada de uma campanha eleitoral – está há cinco anos a fazê-la com zelo e afinco diários – foi-se auto-dispensando igualmente e até ao limite do entendível, de avisar os portugueses sobre as suas intenções. Mesmo porém se já conhecidas de sobra (apesar do extraordinário “se” deste próprio jornal, titulando “Marcelo anuncia ‘se’ se recandidata”…) o Presidente fê-lo desnecessariamente tarde. A pátria teria apreciado tratamento menos leve ou mais discreta indiferença presidencial pelas regras do jogo. O tão tardio anúncio relegou para segundo plano não só costumes e normas como o próprio eleitorado a quem enquanto se pede essa coisa poderosamente valiosa que é um voto, ao mesmo tempo se trata com a indisfarçável condescendência do “já adquirido” ou da certeza antecipada do êxito deste candidato-comentador de si mesmo. Nas marés fáceis houve as selfies e a sacrossanta proximidade; nas tormentas – os incêndios, a pandemia, as quase crises políticas – houve por vezes mas sempre perceptivelmente, contradição, hesitação, aflição. Que é uma outra forma para designar alguém que não nasceu para ser “de todas as estações”.

2 Viver como inabitualmente: malas que se fazem e desfazem. Talvez nos mudemos, talvez não, bagagens sem data. Vamos para a semana?. Não afinal não, atordoados por algarismos e gráficos que só sobem sem descer, projetados como dardos por todos os écrans. Melhor não, adia-se o regresso a Lisboa. Uma nova forma de vida, esta inabitualidade. E assim estamos, fora de portas desde março, e como março vai longe. Mas há árvores e mar, um luxo de que me dei conta a cada minuto da vigiliatura: uma via-sacra para tantos, generosa morada para nós. Fomos estando, suportando a saudade, trabalhando, aspirando o campo ou o Atlântico, primavera, verão, outono, e agora já com invernais intempéries. Estações do ano que foram mais tateadas que vividas, na procura espantada de novos hábitos. Fez-se uma horta, houve mais rosas que nunca, aprendemos a lidar com as caprichosas neblinas matinais de que este Oeste tem o segredo e certamente o exclusivo. Somos já quase resilientes na dureza incalculável que é o viver longe dos “nossos”, no cultivar da “distância” como um mandamento, no uso de fantasmáticas máscaras no rosto, no manuseamento dos zoom e outros aparatos, enquanto o ofício conseguiu sair ileso (agradecerei sempre o enérgico ano profissional que tive em mais do que uma sede jornalística).

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3 O pior porém é este “agora”. Um terrível, temível remake. É que nos meses de verão – lembram-se? – houve dias quase parecidos com a vida de dantes, chegámos a pronunciar a palavra ‘férias’ e até a enfeitá-la com outras geografias. Olhávamos para nós descobrindo com falso alívio vestígios da “normalidade” de outrora. Ousávamos até desafiar amigo para o terraço, jantar fora, atravessar uma avenida, pisar a rua, ver gente. Hoje, não. Como em Março, Abril, Maio, voltaram restrições e proibições – recebidas com anómalo assentimento de resto; polícia a vigiar horários, deslocações, viaturas, identidades. Para sair, só com salvo conduto, menos mal que o concelho destino onde passei a morar está a salvo do salvo conduto. Mas em Março, recordo-me bem, a inabitualidade era, digamos, uma aprendizagem contínua, mesmo se aflita e hesitante. Não contávamos que durasse, seria coisa de semanas, parecia até impossível, um absurdo, o mundo ia lá aguentar muito mais tempo? Agora, uma eternidade depois, sabemos que durará. Continuaremos encaixados numa inabitual incerteza, é difícil viver em remake. Além de que a horta esmaeceu, as rosas escasseiam, a viagem do inverno é sempre longa em demasia. E até a armação do presépio foi rara em Natal raro: em vez de montado a várias mãos e gerações, foi feito conjugalmente, uma estreia inabitual.

Mas há sempre, inamovível o porto de abrigo das palavras, é com elas que tenho contado e delas que me tenho abastecida nesta travessia. Encaixo-as na certeza – a única que verdadeiramente tenho – de que o seu uso pode ser infinito. E benévolo, se soubermos lidar com elas.

4 Pelo sim pelo não, deixo as malas feitas. Não tenho nenhuma pressa da capital mas nalgum lado se há-de acolher a meta do fim do pesadelo. Mesmo que melancolicamente ficcionada.

PS: Tanto quanto me é possível uma afirmação assim, não conto, em princípio, tomar parte activa nas eleições presidenciais. Não me calha pessoalmente, não me inspiram profissionalmente. Reconheço a inabitualidade da confissão. Mas há cinco anos passei um mês no Brasil pelo mesmo motivo, agora passarei um mês e meio numa outra lonjura qualquer, mesmo que inventada. Ou meramente mental. Sempre agradeci a Deus a intuição que me deu e com a qual me oriento, mesmo tropeçando. É ela que me dita que neste eleitoral período onde entro mal como num casaco apertado, o melhor é abalar e não maçar o leitor. E depois se verá o que houver para ver.