Alguém disse um dia que “a vida é um cemitério de lucidez retrospectiva”, e existem classes profissionais em Portugal que são particularmente vítimas deste aforismo.
Formado em Portugal, e com 17 anos de SNS em dedicação exclusiva (seja no regime propriamente dito, seja com CIT), coleccionei duas especialidades e tive o privilégio de beber do saber e experiência de uma geração de mestres notáveis na excelência e dedicação aos cidadãos do meu país de origem.
Na nobre profissão que escolhi como minha, foi com entusiasmo que evoluí e fui-me realizando profissionalmente até à autonomia desejada (e sempre incompleta). A disciplina não tem espaço para o aborrecimento e os limites nunca são realmente alcançados.
E de mãos dadas com esta evolução técnico-científica (e, forçosamente, humanista, individualmente enquanto pessoa), assisti aos diversos ruídos parasitas que foram zumbindo ao meu ouvido ao longo desses anos:
- À cada vez menor representatividade dos médicos nos hospitais, que tinham um Director Clínico eleito inter-pares, e que passou a ser nomeado pela administração hospitalar e logo dela dependente (e das influências partidárias a montante);
- Às campanhas de suspeição e de desacreditação da profissão, que impedem, hoje em dia, até a oferta de uma caneta por parte da indústria farmacêutica (e de patrocínios diversos em formação pós-graduada), em nome de uns isolados prevaricadores que foram convenientemente generalizados a toda a classe por parte de quem se rege pelo lema “divide et impera“. Que é quem, por sinal, se arrasta em sucessivos episódios de pornográficas promiscuidades entre Estado e empresas privadas (de um pseudo-mercado livre, que também interessa fazer de conta que existe…) desde sempre e até hoje, com gestão danosa do erário público em milhares de milhões de euros. Políticos que vão fazer parte dos concelhos de administração de empresas com as quais negociaram contratos “público-privados” enquanto governantes, que mantêm influência pelo seu estatuto sobre governantes enquanto representantes dessas empresas, e mais todas as ginásticas próprias de um país corrupto do terceiro mundo já bem conhecidas de todos os Portugueses;
- À infantilização de uma classe com imperativos éticos e que assim assegurava serviços com prejuízo de horário se necessário, desse por onde desse, mas que se fez questão de humilhar com um modelo de cumprimento fabril de horário de trabalho (mais uma vez, a pretexto da generalização de uma minoria prevaricadora…), que progressivamente fez desmotivar todo e qualquer sacrifício extraordinário em prol destas prodigiosas “instituições” inventoras de mais esta forma de desprestígio, desautorizando, ao mesmo tempo, as Direcções de Serviço que sempre estiveram incumbidas de os fazer funcionar com eficiência apesar do crónico cenário de escassez de recursos;
- À multiplicação dos regimes de trabalho nas mesmas instituições (regime carenciado, especialmente carenciado, CIT, …), onde a regra final é que, para trabalho igual, se paga quase sempre diferente;
- À instalação de uma total ausência de meritocracia na escolha para os cargos de gestão (direcção dos serviços, comissões, etc.), e respectivas progressões em inexistentes “carreiras”, substituída pelo conhecido amiguismo luso, sempre de mão dada com a promessa de não perturbar as grandes linhas programáticas do poder vigente, as quais, muitas vezes, só marginalmente se confundiam com aquilo que deviam ser as funções do ministério;
- Ao desvario variável do valor pago em salários e horário extraordinário, ao sabor da incompetente gestão do país e à revelia dos contratos assinados, e que levou a uma enorme perda de poder de compra no sector desde a crise de 2010, nunca completamente recuperada;
- Ao delapidar das estruturas com redução de camas e de valências diversas e, globalmente, à exigência de cada vez mais com cada vez menos, geralmente a troco de nada.
Ou seja, assisti na primeira pessoa à progressiva deterioração de uma classe de elite, de excelência ímpar no panorama nacional, com resultados práticos bem mensuráveis, mas que, se calhar por isso, se revelava demasiado incómoda num sector (como o da Saúde) que para ter qualidade implica (forçosamente) despesa significativa, e perante a qual todos os governantes se empenharam, árdua e impiedosamente nas últimas décadas, em destruir a honorabilidade da sua imagem pública, a qualidade da sua formação e as suas condições gerais de trabalho, para depois poderem gerir com impunidade e a seu bel-prazer as finanças do sector, delapidando-o com as consequências que se constatam há muito tempo e muito mais visivelmente hoje.
Muitos, como eu, desistiram e partiram, para onde a insanidade perante aquilo que julgamos representar enquanto profissionais não fosse tão gritante, por falta de paciência com os cretinos que sucessivamente gerem os destinos nacionais e falta de fé na possibilidade de uma evolução real das mentalidades (no nosso tempo de vida útil).
Outros, corajosos quixotescos e eternos optimistas, ou simplesmente acomodados, persistiram.
Eu conheço-os e eles estão a fazer milagres por essas instituições de saúde fora, nestes tempos difíceis. Apesar de governados por cínicos malfeitores de lágrima popular em riste para as televisões, apesar da brutal falta de estrutura física e humana com que os foram brindando ao longo dos anos e que agora não conseguiram acautelar e reforçar para as enormes necessidades (mesmo apesar de meses e meses para se prepararem para o efeito…), apesar de mantidas campanhas de descredibilização que cobardemente menorizam o seu brio e enorme coragem, apesar da ausência de pedidos de desculpa (ou outros vislumbres de “compensação” fora as hipócritas palavras, prontas a ser trocadas assim que convier ao seu objectivo eleitoralista), apesar da ignomínia de agora até passarem os profissionais de saúde para segundo plano no programa delineado de vacinação a esta doença à qual estão directamente expostos e da qual são vítimas preferenciais, face aos amigos do partido e das autarquias, pois eles aí estão, no recato dos muros das enfermarias, UCI’s e serviços de urgência, nas VMER’s e um pouco por todo o lado onde vão sendo precisos, a salvar vidas, a cuidar, a esticar os recursos para chegar ao máximo com o mínimo de perda de qualidade na prestação de cuidados, a desenrascarem e a fazer omeletas sem ovos.
E existe um, e apenas um, responsável por este fado: o Governo (o de agora, e os dos passado). Em política de Saúde, há décadas que a sucessão PS/PSD (com mais ou menos geringonça, mais ou menos CDS…) é coerente e sintonizada em política de desinvestimento na Saúde, ao ponto do SNS já nem conseguir cumprir a sua função devidamente em tempos de estabilidade e “normalidade”. Conseguiu chegar-se ao inacreditável ponto de dedicar à saúde dos portugueses uma das menores percentagens do PIB (e isto relativamente a um dos menores PIB’s) da Europa!
A política de Saúde Pública, caros leitores, é responsabilidade do Governo, não é dos “Portugueses que não cumprem”. Se não cumprem, o Governo falhou na sua política de Saúde Pública e ela devia ter sido corrigida para passarem a cumprir! Não vale “lavar as mãos” dessa responsabilidade, pois mais ninguém a tinha. É o mesmo que mandar soldados para a guerra e, perante uma esmagadora derrota, dizer que a culpa foi da falta de pontaria!
Por fim (e talvez mais importante ainda), a capacidade de resposta do SNS aos surtos, e respectivo planeamento que se exigia ao longo dos muitos meses que decorreram desde o início da pandemia, é obviamente do Governo! Esta é a primeira (verdadeira) vaga em Portugal (e não “a terceira”). Por razões diversas, o país teve a sorte de não sofrer esta situação até Janeiro de 2021, mas que foi varrendo vários países da Europa ao longo dos meses precedentes, muitos dos quais por mais do que uma vez, sendo que alguns foram apanhados de surpresa pela mesma em Março, então, de facto, sem tempo para se prepararem. Chegou agora a Portugal com essa intensidade, numa altura em que se calhar muitos pensavam que já não seria o caso. E o culpado do desleixo é só um, que não pode alegar a falta de tempo ou de exemplos práticos como desculpa para a dita “impreparação”. É, numa palavra, imperdoável.
Os Portugueses que estejam bem conscientes que sem memória não há Justiça e que sem Justiça não haverá nunca verdadeira cura para este mal nacional que representa a mediocridade governativa crónica da qual padecemos. E trocar de pantomineiros por outros semelhantes mas de outra cor, não será solução. Estejam sempre cientes disso aquando da tão nojenta quanto permanente propaganda daqueles que agora vêem o resultado da sua incompetência traduzida em mortes e nesta desgraça toda (presente e futura) e cuja única preocupação é, por um lado, inventarem um culpado a quem imputar culpas e, por outro, coleccionar argumentos para se vitimizarem perante aqueles que supostamente deviam proteger e governar.
Existem pois culpados, mas não, os culpados não são os Portugueses que adoecem e morrem (e que “não se protegeram”, e que “oram egoístas”, e que “não pensaram no próximo”, etc.), e muito menos aqueles heróis que, desprezados e menosprezados por esta governança e as anteriores, não param de inventar formas de (realmente) os tentar ajudar com a qualidade possível, nem que seja por uma mera questão de brio, de carácter e de formação: os médicos e demais profissionais de saúde desse país.