“Mais tarde, sentado na varanda a comer o cão, o Dr. Robert Laing reflectiu sobre os estranhos acontecimentos que nos últimos três meses tinham ocorrido no interior do prédio enorme”. É desta forma intrigante e eficaz que, em pouco mais do que três linhas, J.G. Ballard amarra a atenção do leitor no arranque de “Arranha-Céus”.

Quem decida embrenhar-se na leitura desta distopia vai descobrir a perspectiva de Ballard sobre o que pode suceder no interior de um edifício descomunal de quarenta pisos e mil apartamentos quando a natureza humana é deixada à solta e entregue a si própria. Será difícil evitar sentir-se consumido, logo na primeira página, pela curiosidade de saber que eventos bizarros terão acontecido neste empreendimento, que soma a arquitectura megalómana a uma experiência de engenharia social, para que o regresso a uma vida normal e tranquila seja compatível com o cenário de uma aprazível refeição ao ar livre em que o prato principal é o animal que, antes de passar pelo forno, seria considerado de estimação.

Ao escrever “Arranha-Céus”, Ballard jamais terá pensado em eventuais futuras polémicas entre Mário Centeno e Yanis Varoufakis, o ministro das Finanças da Grécia que, em 2015, com a economia do país a deslizar para o abismo e os bancos sob a ameaça de terem de fechar as portas por falta de liquidez, ensaiou um braço-de-ferro com os credores do país. Acabou por ser ultrapassado e triturado pelo pragmatismo de Aléxis Tsipras.

O homem em quem a esquerda europeia confiava para desempenhar o papel do herói que iria colocar os sinistros mandões da zona euro na ordem pegou no referendo que dava conta da rejeição, pelos eleitores gregos, das medidas de austeridade exigidas em contrapartida de um terceiro resgate, enfiou-o na gaveta e submeteu a Grécia às exigências que lhe garantiram o dinheiro necessário para se manter à tona de água.

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Tudo isto passou à história, mas a normalidade que se seguiu inclui aspectos tão insólitos quanto o do cão que a personagem criada por J.G. Ballard transforma em manjar. Tsipras, pacífico como um cordeiro, continua a aplicar as medidas que permitem à Grécia ter acesso a sucessivas parcelas do financiamento que os credores europeus aceitaram conceder. E quem faz o papel de chefe da polícia que avalia o comportamento de Atenas é Mário Centeno, presidente do Eurogrupo, a entidade de que Varoufakis se queixou amargamente por considerar que tinha mais poder do que a Comissão Europeia e que acusou de ser a verdadeira responsável pelo fracasso dos seus planos.

Nada disto seria especialmente estranho e irónico, caso o ministro das Finanças português não integrasse um Governo liderado por um primeiro-ministro que celebrou a ascensão de Tsipras ao poder como um sinal de mudança na Europa, uma espécie de reedição dos amanhãs que cantam. E que, tal como o líder do Syriza, prometeu fazer frente aos adeptos da austeridade em Bruxelas, ou onde pudessem ser encontrados, antes de também guardar a irreverência no saco e mudar de rumo, durante o primeiro semestre de 2016, quando foi forçado a tomar medidas para evitar o risco de incumprimento das metas orçamentais e poder acomodar as exigências dos parceiros do euro.

Sem surpresa, Mário Centeno vai tropeçando nas contradições inevitáveis que vêm associadas ao facto de ter de usar dois chapéus. Quando coloca o de ministro das Finanças, concede a si próprio a liberdade de fingir que a sua política orçamental não tem vestígios de contenção e austeridade. Enquanto presidente do Eurogrupo, cabe-lhe exigir desempenhos de acordo com as regras da zona euro. Neste caso, com o recurso à gíria com que os líderes europeus trocam recados.

Foi nesta qualidade que Centeno irritou Varoufakis, ao ponto de ter sido acusado pelo antigo ministro das Finanças grego de acrescentar a injúria ao insulto. Tudo isto, em resumo, porque afirmou, talvez sem se aperceber do real alcance das palavras, que se a Grécia tivesse tomado mais cedo as medidas que lhe foram pedidas, os resultados teriam, igualmente, surgido mais cedo. Entre estes frutos teriam estado “a conquista da confiança dos investidores e dos parceiros europeus”. Wolfgang Schäuble, tido como a personificação dos horrores da ortodoxia da zona euro, não o teria dito de forma mais clara.

Ficou a saber-se, afinal, que, por detrás da máscara política que adopta para ajudar a garantir a estabilidade emocional dos parceiros da coligação que sustenta o Governo do PS, Centeno, na versão de presidente do Eurogrupo, reconhece que os seus antecessores fizeram aquilo que, do seu ponto de vista, era correcto e necessário. Enquanto a Grécia desperdiçou tempo e dinheiro, Portugal aplicou as medidas duras que lhe foram colocadas em cima da mesa e conseguiu regressar aos mercados ainda antes de o programa de ajustamento que lhe cabia cumprir ter expirado. O caminho seguido por Pedro Passos Coelho, Vítor Gaspar e Maria Luis Albuquerque acaba de ganhar um apoiante inesperado.

Qual é a normalidade genuína de Mário Centeno? Se for a de ministro das Finanças, pode concluir-se que a sua situação não é muito diferente daquela em que Robert Laing se encontrou depois de todas as peripécias que ocorreram no interior do arranha-céus que prometia felicidade e autosuficiência. Mas há uma diferença. Laing não estranha estar a almoçar um cão, enquanto Centeno prefere engolir sapos. Provavelmente, sem dar por isso.