A pandemia tem os dias contados e já se olha para como vai ser depois. O último número da revista The Spectator e a entrevista de António Costa no jornal Público da passada sexta-feira demonstram isso mesmo. É certo que no Reino Unido estão mais avançados no combate à Covid-19 que nós. Por essa razão a revista inglesa reflecte a preocupação com a inflação enquanto António Costa ainda nos faz perder tempo com o velho chavão da culpa neoliberal.
Ao contrário do que o Primeiro-Ministro conta, esta crise se atesta o quer que seja é o falhanço do desenvolvimento sustentado na dívida. Sejamos claros: o maior problema que o SNS português teve em lidar com a pandemia foi o sobre-endividamento do Estado. Não é fácil investir na saúde com uma dívida pública superior a 120% do PIB e que, em termos nominais, nunca deixou de subir. O Primeiro-Ministro sabe disso como o comprovam as cativações orçamentais que fez no sector da saúde, com o apoio do BE e do PCP. Não há aqui qualquer liberalismo, mas mera contabilidade orçamental derivada de uma despesa excessiva que os socialistas sempre aprovaram. Na verdade, uma governação não socialista pressupõe a redução efectiva da dívida pública. Não terá sido por acaso que esta era de 231 mil milhões de euros em 2015 para atingir a soma de 249,7 mil milhões em 2019. Não teria sido mais fácil financiar o SNS se o Estado devesse menos dinheiro? Naturalmente que sim. É verdade que o dinheiro emprestado agora (e sublinhe-se o agora) é praticamente de borla, mas já lá vamos.
O velho chavão neoliberal que Costa utiliza visa agradar o seu eleitorado que desconhece o papel que outros governos socialistas tiveram nessa fama. Refiro-me aos que, perante a estagnação económica dos anos 80 e 90 e perante o sucesso de Margaret Thatcher no Reino Unido, decidiram desregulamentar a economia, privatizar empresas públicas e cortar na despesa do Estado. O resultado foi excelente, apesar desses governos serem de esquerda. Vamos a alguns exemplos.
Em 1994 a Suécia encontrava-se no meio de uma grave crise económica, com uma economia extremamente regulamentada e empresas estatais falidas que impediam a melhoria da vida dos cidadãos. Três anos antes um governo de direita iniciou reformas que (porque a economia estava numa panela de pressão) tiveram por efeito imediato uma inflação elevada, desemprego, especulação monetária, falência de bancos, défices e um endividamento excessivo. Quando a esquerda sueca venceu as eleições de 1994, de imediato continuou com as reformas do governo anterior, cortou na despesa e equilibrou os orçamentos. A dívida pública foi reduzida e o país assistiu a um desenvolvimento económico e social verdadeiramente sustentável. Não foi caso único.
A Nova Zelândia passava em 1984 pelos mesmos problemas. Também aí foi um governo socialista que privatizou empresas insolventes, desregulamentou a actividade económica, pôs fim aos subsídios estatais, cortou na despesa do Estado e reduziu a dívida pública. As políticas encetadas entre 1984 e 1990 permitiram um crescimento económico verdadeiro sustentável, porque com menos dívida pública. Outro caso exemplar foi o Canadá que na década de 90 seguiu os mesmos trâmites de desbloqueio dos entraves estatais da economia. O Canadá conseguiu excedentes orçamentais, reduziu a dívida pública e conseguiu limitar os efeitos da recessão que atingiram os EUA na crise de 2008.
A Alemanha foi outro exemplo socialista de aplicação de políticas que António Costa apelida de neoliberais. O vilão que encetou as reformas estruturais que ainda hoje beneficiam os Alemães chamava-se Gerhard Schröder e era do SPD. É pena que o PS português se envergonhe destes casos de sucesso. Portugal, todos nós, ganharíamos se os socialistas portugueses fossem menos dogmáticos. Se estivessem dispostos a uma governação mais exigente para eles e mais promissora para nós. Infelizmente, não é o caso. Infelizmente, a esquerda portuguesa continua no registo dos anos 70, antes de Margaret Thatcher ter experimentado com sucesso as políticas que até a esquerda, com excepção da portuguesa, acabou por seguir.
Foi por esta razão que mencionei a última The Spectator. Ao abrirmos a revista e se lermos o artigo que mereceu o destaque da capa ficamos a saber que Rishi Sunak, o ministro das finanças do Reino Unido, está preocupado com a inflação que pode regressar no seguimento do forte aumento da despesa pública que resulta do combate à crise pandémica. Uma inflação alta, além dos efeitos nefastos que se conhecem, seria hoje em dia particularmente grave porque uma subida das taxas de juro para a combater teria fortes implicações no custo da dívida. O dinheiro deixaria de ser de borla. A acontecer, a bancarrota dos Estados já não seria uma hipótese longínqua mas uma realidade dolorosa. O que pretendo transmitir é que enquanto este perigo se discute no Reino Unido, por cá continuamos entretidos com as narrativas do neoliberalismo papão. Fartamos-nos também de ouvir falar do desenvolvimento sustentável, sem que se reconheça o esforço que isso obriga. Para cúmulo até temos direito a um ministro que brinca aos empresários com a TAP. Como se tal não bastasse há ainda os que sonham com um novo aeroporto e discutem se este fica melhor na Ota ou no Montijo, sem que se pondere quais as repercussões que o turismo virtual pode ter nos próximos anos. Na mesma entrevista António Costa afirmou que daqui a 5 anos estaremos mais próximos da Alemanha do que estávamos em 2016. É o conhecido jogo da retórica circular. Os socialistas portugueses foram teimosos há 30 anos e serão teimosos nos próximos 30. Podia ser diferente? Podia, mas para isso não basta apenas ter sorte.