Devo a António Guerreiro o conhecimento de Édouard Louis, de acordo com o princípio das cerejas que regula o mundo dos livros: Guerreiro fala de Geoffroy de Lagasnerie, e do seu ensaio O meu corpo, este desejo, esta lei, e de Lagasnerie refere Édouard Louis, que remete, por sua vez, para Didier Eribon e o seu Regresso a Reims.

Édouard Louis é o nome adotado por Eddy Bellegueule, um jovem escritor francês (nasceu em 1992) que descreve o contexto social de pobreza em que cresceu, no norte de França, em Para acabar de vez com Eddy Bellegueule. O registo autobiográfico dos seus textos faz imediatamente recordar Annie Ernaux, com o mesmo espírito de emancipação social e o mesmo sentimento de deslocação familiar, apesar de Édouard Louis pertencer a uma geração muito diferente.

Se Elena Ferrante e Ernaux retratam a possibilidade de uma emancipação feminina – a hipótese de, através dos estudos, poderem escapar à lógica social que condicionava os papéis da mulher –, já o que move Édouard Louis é a sua homossexualidade: “O facto de gostar de rapazes transformava toda a minha relação com o mundo, levava a identificar-me com valores que não eram os da minha família.” Esses valores familiares eram aqueles que resultavam da classe operária e, por isso, a sua desadaptação decorria do facto de o mundo operário assentar em valores de masculinidade que não lhe permitiam viver o próprio corpo:

“Descubro –
uma coisa que já suspeitava
que me tinha atravessado o espírito.
Aqui os rapazes beijam-se para dizerem bom dia, não apertam a mão
Trazem sacos de couro
Têm maneiras delicadas
Todos teriam podido ser tratados como paneleiros na escola
Os burgueses não usam os corpos da mesma maneira
Não definem a virilidade como o meu pai, como os homens da fábrica”

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É assim que, em História da Violência (livro que relata a violação e a tentativa de assassínio de que foi alvo), Édouard Louis afirma:

“Reda quis saber porque é que, com pouco mais de vinte anos, tinha deixado a família e sobretudo porque é que não passava o Natal com ela. Sugeriu que podia ser por causa dos estudos. Respondi-lhe que os estudos tinham sido para mim mais uma consequência da minha fuga. Que primeiro tinha fugido. Os estudos, a ideia de estudar tinha surgido muito mais tarde, quando compreendi que esse seria o único caminho possível, ou pelo menos o único caminho que me permitiria afastar-me não só geograficamente, mas também simbolicamente, socialmente, e, portanto, totalmente, do meu passado. (…) Só os estudos poderiam permitir-me uma fuga total.”

Na verdade, a fuga total é uma ilusão, e Édouard Louis sabe-o porque conhece Didier Eribon, a quem dedica o seu primeiro livro. Em Regresso a Reims (2009), Eribon conta como a morte do pai o levou a empreender a dura tarefa do regresso: “Escapara-me à família e não me apetecia nada revê-la.” E era o pai que representava o mundo de que fugira: era a “pessoa que encarnava tudo aquilo que eu quisera deixar, tudo aquilo com que quisera romper, e que, seguramente, constituíra para mim uma espécie de modelo social negativo, uma anti-referência no trabalho que levara a cabo de me criar a mim próprio.”

A homossexualidade de Eribon é um fator fundamental para essa recriação de si próprio, mas Regresso a Reims debruça-se antes sobre a questão da classe, obrigando o autor ao reconhecimento difícil e sincero da contradição que marca a esquerda política: “Estava politicamente do lado dos operários, mas detestava a minha pertença ao seu mundo.”

O seu contexto familiar permitia-lhe o contacto direto com o mundo dos operários, as suas dificuldades, as suas preocupações, os seus receios. Mas a intelectualização política, que se iniciou logo na adolescência de Eribon, afastava-o irremediavelmente da realidade operária: “E ainda que fosse marxista, devo confessar que o marxismo a que aderi durante a fase de estudos, tal como o meu militantismo esquerdista, eram talvez apenas uma forma de idealizar a classe operária.” Perante essa idealização, a vida real dos pais parecia-lhe absolutamente censurável e “tinha pena que os meus pais fossem quem eram e não os interlocutores que gostaria de ter tido ou aqueles que alguns dos meus colegas tinham na pessoa dos pais deles”.

Depois da fuga, depois do sucesso intelectual, depois da emancipação social que o torna um intelectual burguês, Eribon procura vingar a sua classe neste livro, o que o leva a enfrentar a questão que tem traumatizado os meios intelectuais da esquerda francesa nas últimas décadas:

“Quando era criança, toda a minha família era “comunista”, no sentido em que a referência ao Partido Comunista constituía o horizonte incontestado da relação com a política, o seu princípio organizador. Como é que ela se tornou uma família em que pareceu possível e por vezes quase natural votar na extrema-direita ou na direita? (…) [E] que responsabilidade esmagadora teve a esquerda oficial nesta mudança?”

É a essa viragem eleitoral que dedicarei o próximo texto.

PS: A massificação das redes sociais, onde os utilizadores são produtores de conteúdo e não meramente consumidores, tornou o serviço de fact-checking dos conteúdos on-line numa espécie de missão social dos meios de comunicação: os jornais reclamaram a sua função de guardadores da Verdade e propuseram-se verificar se aquilo que é dito pelos comuns mortais nas redes sociais corresponde à verdade. Não haveria nada de errado nisso se a avaliação realizada não se revelasse, ela mesma, muitas vezes subjetiva ou ignorante do contexto que deu origem ao tal conteúdo. Um exemplo desse mau serviço foi o publicado pelo Observador sobre a alteração da definição de mulher pelo Dicionário de Cambridge. O texto do artigo reconhece que a definição foi alterada – portanto, é factual –, mas a jornalista preferiu classificar a afirmação como “Enganadora”, porque 1) o dicionário mantém inalterado o significado inicial, e 2) as publicações não afirmavam que a definição de homem também foi alterada. Esta justificação ignora evidentemente os termos da discussão política atual, mas a ativista Kellie-Jay Keen pode ajudar: mais conhecida como Posie Parker, Kellie-Jay criou o movimento Standing for Women para a defesa dos direitos das mulheres. Depois de ter sido banida do Twitter por mais de quatro anos, Posie Parker foi readmitida e tem um canal no Youtube muito ativo. Para efeitos do Fact Check, importa sobretudo ouvir a sua entrevista a Konstantin Kisin e Francis Foster no podcast Triggernometry: “Trans Women Aren’t Women”.