Como todos os da minha geração, tenho amigos, uns mais próximos, outros mais distantes, a morrer como se morre neste tempo e lugar: sem família, sem um padre, sem um amigo, numa higienizada solidão assistida estranhamente próxima da conspurcada solidão acompanhada dos muitos que, ao longo dos séculos e milénios, foram morrendo de peste. O progresso trouxe muita coisa, ou muitas coisas, mas não apagou o essencial da natureza humana e da sua fragilidade. Nos últimos dias, do círculo dos amigos, morreram a Clara, o Nuno, o Jimmy, o Luís e o Alberto.

E morreu também o Tenente-Coronel Marcelino da Mata. Encontrávamo-nos pelo menos uma vez por ano, no dia 10 de Junho, junto ao monumento do Forte do Bom Sucesso de Belém, onde estão inscritos os nomes de todos os que morreram na guerra do Ultramar. Marcelino da Mata não morreu na guerra, morreu desta Pandemia que, num ano, matou já o dobro dos portugueses caídos em 13 anos de guerra de África.

Mas a sua morte, a sua figura, a sua memória ou foram caladas ou levantaram polémica. E porquê? Porque para a esquerda de variante americana que anda agora por aí, homens como Marcelino da Mata não podem existir. Incomodam. Desassossegam. Baralham. Não cabem na narrativa simplista e maniqueísta adoptada. Não se encaixam no paradigma. Não cumprem o papel de “negros úteis”; um papel que outrora seria, paternalisticamente, a docilidade e a gratidão mas que agora parece ser, também paternalisticamente, a insurreição ou, mais precisamente, o “activismo anti-racista”. É este o guião – também ocidental e caucasiano – com que os actuais comissários políticos das minorias oprimidas querem perpetuar o racismo. Um negro que tem a ousadia de não se cingir àquilo a que a raça o obriga? Um negro que não se deixa “empoderar” e não quer cumprir o seu destino de minoria oprimida? Um negro da Guiné que combate no Exército Português, nas Forças Especiais, que se distingue em combate, que é condecorado? Um negro que depois do 25 de Abril, no período do PREC, é preso, insultado e torturado no RALIS por oficiais do MFA e maoístas à paisana? Nada disto pode existir e terá, por isso, de ser rapidamente eliminado ou branqueado: Marcelino foi um “traidor” e cometeu “crimes de guerra”; os oficiais do MFA e os ajudantes maoístas foram “corajosos e determinados”, ou mesmo “heroicos”.

Um determinismo marxista de estirpe americana

Chamar “esquerda radical” a esta estirpe americana é insultuoso para a esquerda radical, onde conheci e conheço gente decente, com convicções, com cultura, com coragem, com passado. E chamar-lhes “marxistas culturais” também me parece ofensivo e excessivo: primeiro para Marx, que era um homem inteligente e até com sentido de humor e que grande parte destes seus seguidores desconhece; e depois para a cultura, que maioria não tem ou não pratica, independentemente dos títulos académicos – que, se nunca foram uma garantia absoluta, agora muito menos o serão.

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Mas o facto é que nesta Terceira República a dita estirpe americana parece estar a fazer caminho na academia, na comunicação, na opinião. E talvez num ponto seja marxista: no determinismo materialista. Também para eles as condições étnicas e sócio-económicas e as opções sexuais determinam, de modo absoluto, as ideias, o pensamento e os valores políticos e morais das pessoas. Já Marx e Engels desconfiavam do sufrágio universal, temendo que o Povo nem sempre votasse bem, ou seja, de acordo com os seus “verdadeiros interesses de classe”. Como a União Soviética acabou e como “os trabalhadores” e os operários que ainda restam na Europa e nos Estados Unidos deixaram de ser comunistas (Herbert Marcuse percebeu isso há 60 anos), estes marxistas procuraram outras clientelas oprimidas: minorias étnicas, minorias sexuais, minorias animais, vegetais ou minerais, tudo o que pudesse estar oprimido ou sentir-se ameaçado. E construíram sobre isso uma semântica (acabei de ver agora, num artigo de Rod Dreher, Orwell’s Cookbook, um exemplo censório de reescrita de receitas culinárias para não ferir susceptibilidades étnicas; vale a pena). Mas mais do que uma semântica, construíram uma narrativa histórica simplista e maniqueísta em que do lado deles tudo é perfeito, e o lado contrário, ou não existe ou é intrinsecamente perverso, inumano, repugnante. Tal como no Ruanda os hutus consideraram os tutsis “baratas” para os exterminarem mais facilmente, assim também eles consideram os inimigos criminosos de guerra, traidores de raça ou traidores de classe ou de minoria. Enfim, seres a ignorar, a exterminar ou a banir das “redes” e da História.

Ortodoxia sem desvios

Instalou-se uma narrativa oficiosa que não admite desvios. Mas além das naturais diferenças e divergências de ideias políticas, ou até de valores políticos, cresce a negação aos inimigos de qualquer qualidade ou dignidade humana.

Sempre considerei que entre os meus inimigos políticos (e chamo-lhes inimigos e não adversários) haveria com certeza pessoas decentes, humanamente decentes. E que tinham inteligência e convicções, e que, por essas convicções, assumiam riscos, sofriam consequências.

Eram assim alguns dos “associativos” da Faculdade, eram assim alguns militantes comunistas, eram assim alguns guerrilheiros do então Ultramar. Combatia-os, mas respeitava-os, porque o combate político, o combate por uma causa, não retira ao outro, ao inimigo, o carácter humano, a qualidade de filho de Deus ou, para os que não crêem em Deus, de ser humano. Não é preciso odiar para combater, e há boas causas servidas por más pessoas e causas más servidas por pessoas boas. E passada a razão da luta, ou o calor do combate, nada nos impede de falar com “o inimigo” sem despeito nem remorso e até com amizade e cumplicidade do que nos uniu e separou ou do que nos une e separa nas guerras que travámos ou travamos. Tenho tido ocasião de o fazer em Angola e Moçambique. Também nas guerras políticas pode haver regras, como sempre as houve nas guerras entre Estados, para tratar inimigos e prisioneiros, desde os códigos medievais de Cavalaria, até às Convenção de Genebra.

Os sub-humanos inimigos do povo

Mas é nas guerras ideológicas, herdeiras das guerras religiosas, que as coisas tendem a mudar. Quando os soldados a motivar para o combate passam a ser também “as populações”, “as massas populares”, os jornais, a academia, a “arraia miúda”, “o povo”, a retórica e as regras são outras; e à doutrinação segue-se muitas vezes a fanatização; e à fanatização, a barbárie. No século XX, na guerra civil europeia, com a teoria do “inimigo de classe” de bolcheviques e maoístas, e do “inimigo do povo alemão” do hitlerismo, impregnou-se nas massas a endoutrinar, num espírito maniqueísta, a ideia de que os nossos eram moralmente superiores, de que o Bem e o Mal eram categorias absolutas aplicáveis à política e que os do Bem tinham de destruir, aniquilar, exterminar de vez, os do Mal. E que os partidários do Mal absoluto, os outros, eram, como os judeus para os hitleristas, UnMensch, não-pessoas; não existiam como pessoas, por isso era indiferente se deixassem de existir; ou então não existiam mesmo, como os desempregados na sociedade soviética, onde não podia haver desemprego. E as razões dessa sub-gente também não existiam e as suas acções eram sempre pérfidas e as sua narrativa sempre falsa.

Agora, um negro que esteja do lado errado da vida ou da História, também deixa de ter individualidade e densidade para passar a ser total e absolutamente “um pai Tomás”. Tal como Juiz Clarence Thomas, um negro americano conservador, só poderá ser “preto de serviço”. Há dias, um independentista catalão tratou insultuosamente o líder do VOX na Catalunha, que é mestiço (categoria incómoda, tal como outrora as “classes médias”); e fê-lo num tom que se o branco ofensor não fosse de esquerda e se o negro ofendido não fosse de direita, lhe teria valido uma crucificação em directo nos media. Também, quando a rede social Hornet noticiou que 45% da comunidade homossexual e LGBT norte-americana votava Trump, contra 51%, que votava Biden, o escândalo e incredulidade invadiram elite mediática progressista.

Do lado errado da História

Marcelino da Mata, aparentemente, também terá saído da categoria que lhe estava destinada por estes novos inquisitores.

Quando morreu, como o mais condecorado militar desta geração, teve um funeral com as chefias militares e onde o Presidente da República quis estar presente. O que só lhe ficou bem. A Comunicação Social, que se ocupa e preocupa com todo o fait-divers, não esteve presente no funeral. E ontem, vá lá, no Parlamento, houve um voto de pesar com maioria absoluta.

Nos combates da História e na História, com ideias e ideologias à mistura, com lealdades nacionais diferentes, com hierarquias de valores às vezes também complexas, os juízos definitivos não são simples. Que um combatente guineense do PAIGC não tenha Marcelino da Mata em boa conta é admissível; e que, pelas mesmas razões, um combatente português da guerra de África não tenha em boa conta um “capitão de Abril” também. Os direitos são iguais. Mas é essa igualdade de direitos perante a História que a tal esquerda, no seu fanatismo cada vez mais maniqueu e mais empedernido, se recusa a reconhecer. E excedem-se no zelo, como aquele Grande Inquisidor da Lenda do Dostoievsky nos Irmãos Karamazov, que prendeu e mandou queimar o próprio Cristo, quando Cristo voltou à terra, em Sevilha, no século XVI.