1. No discurso político corrente entre nós, inclusive de membros de órgãos de soberania no exercício das suas funções, é frequente a invocação da democracia, tout court, como argumento de justificação, ou de crítica, de políticas públicas em alternativa. Ora, e como é sabido, houve e há, ainda hoje, diferentes conceitos de democracia, alguns inimigos entre si. Basta recordar a oposição revolucionária das chamadas “democracias populares” (de Leste) às “democracias liberais” (do Ocidente), em especial durante o longo período da guerra fria. Esta oposição ainda não morreu, e até parece capaz de se querer perpetuar por via de novas “democracias de opinião”, como a da “democracia bolivariana”, na Venezuela. Entretanto, nós temos bem definida, na Constituição Política da República, qual é a concepção da democracia portuguesa. Uma normal educação para a cidadania, exigível sobretudo aos políticos, devia evitar a invocação da democracia em sentidos divergentes do sentido constitucional.
2. Um importante facto político recente, entre nós, comprova bem a questão apontada. Em princípios do ano de 2018, saiu um livro, que foi muito celebrado pela comunicação social e veio a determinar um processo legislativo para uma nova lei do SNS, da autoria de António Arnaud e João Semedo, que se intitulou assim: Salvar o SNS. Uma nova Lei de Bases da Saúde para defender a Democracia. Ora, neste livro, a necessidade de um novo SNS que exclua a participação de quaisquer parcerias privadas (portanto exclusivamente estatal) é justificado pelo fim da defesa da democracia. A questão que então se levanta é esta: qual é a democracia que os autores assim pretendem defender? A democracia constitucional portuguesa não é seguramente, porque a Constituição não caracteriza a nossa democracia com monopólios de Estado e com a exclusão de parcerias privadas nos serviços públicos do Estado social.
3. Diz assim a Constituição, logo no artigo 1.º: “Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana”. E imediatamente, no artigo 2.º, define o Estado de Direito Democrático como baseado no “pluralismo democrático” [e não no “centralismo democrático”]; no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais [e não na exclusão dos cidadãos de participarem nos serviços públicos estatais]; “visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
4. O estimado leitor leu bem? Reparou que a definição constitucional do art. 2.º termina dizendo que a democracia portuguesa (que toda a gente sabe é uma democracia representativa, como todas a democracias modernas), além de ser integral (isto é, de abranger as várias esferas da vida pública, designadamente económica, social e cultural), “visa o aprofundamento da democracia participativa”?
Nunca ouviu falar da democracia participativa? Mas olhe que logo adiante, quando a Constituição enuncia e ordena quais são as “tarefas fundamentais do Estado”, ela diz que o Estado é expressamente obrigado a “Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais” (al c) do art. 9.º). Não é claro?
5. Mas há mais: no sistema constitucional português, a questão da democracia participativa ganha um sentido muito mais rico e um alcance muito mais amplo do que aquele que já lhe pode ser atribuído por assim dizer numa boa teoria geral da democracia representativa ocidental, de cepa liberal e com base nesta última nossa citação do art. 9.º. É que a Constituição portuguesa colocou num novo patamar toda esta questão, ao submeter expressamente o Estado ao princípio da subsidiariedade, tanto na sua organização como no seu funcionamento. Nestes termos: “O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento […] os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da Administração Pública”.
6. Ora, é assim que a articulação entre a democracia participativa e o princípio da subsidiariedade do Estado constitui uma nova concepção da democracia. A articulação da democracia representativa com a democracia participativa (articulação que tem sido historicamente conflitual) transforma-se uma harmonização perfeita, sempre equilibrada e amiga. Porque, se bem observar o princípio da subsidiariedade, o Estado nunca intervém em conflito com a iniciativa privada, mas intervém sempre em benefício da iniciativa privada em sua substituição no caso desta ser incapaz ou insuficiente. Assim, a iniciativa o Estado e a iniciativa da sociedade civil são sempre harmónicas, como as duas faces de uma mesma moeda.
7. Não se sabe bem o que é princípio da subsidiariedade? Ora essa, sabe-se muito bem. Desde 1931 que uma voz mundialmente conhecida o definiu paradigmaticamente, na intenção de combater a ascensão dos totalitarismos do fascismo italiano, do comunismo estalinista e do nazismo alemão, nestes termos: “Permanece contudo imutável aquele solene princípio da filosofia social: assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem conseguir com a sua própria iniciativa e capacidade, para o confiar à colectividade, assim também constitui uma injustiça, um grave dano, uma perturbação da boa ordem social, passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podem conseguir. O fim natural da sociedade e da acção social é subsidiar os seus membros, não é destruí-los nem absorvê-los”. Em continuidade, uma outra voz mundialmente conhecida confirmou mais recentemente a defesa deste princípio: o Papa João Paulo II, na Encíclica Centesimus annus, escreveu: “Intervindo directamente, e quando irresponsabiliza a sociedade, o Estado assistencial provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominando mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os cidadãos, e com um acréscimo enorme de despesas”.
8. Devemos esta grandíssima novidade às negociações partidárias que precederam a revisão constitucional de 1997, conduzidas decisivamente por Marcelo Rebelo de Sousa, então líder do PSD, e por António Vitorino, pelo PS. Foi um facto constitucional de relevância mundial, porque, tanto quanto sabemos, Portugal foi então o primeiro país do mundo a introduzir expressamente na sua Constituição nacional esta novidade do princípio da subsidiariedade do Estado, que tem apenas um precedente internacional no Tratado da União Europeia. Para aqueles que pensam, como é o nosso caso, que o princípio da subsidiariedade do Estado será o fundamento da “democratização da democracia” que constituirá a revolução política do terceiro milénio, seria caso de algum orgulho nacional, não se desse o caso de termos esquecido por vinte anos esta nossa histórica antecipação. Porque, de facto, não se tem ouvido falar, entre nós, do princípio da “subsidiariedade do Estado”. Não, não tem. E tem-se ouvido repetidamente (em especial por parte de sindicalistas, políticos e governantes) defender exactamente o contrário, isto é, a supletividade dos privados perante as iniciativas do Estado — por exemplo na acção social, na educação escolar, no SNS (neste caso quando o primeiro-ministro socialista António Costa defendeu que os cidadãos só devem poder protagonizar parcerias privadas enquanto supletivos do Estado no SNS).
9. É de facto verdade que anda por aí uma política activa e “oficiosa” de propaganda anti-constitucional. E os nossos partidos e “media” que se auto-consideram defensores da democracia constitucional, de raiz liberal e finalidade personalista, pluralista, participativa, económica, social e cultural, o que dizem a isso? Se afinal não cobrem os défices da educação para a cidadania na vida política, nem corrigem eficazmente as políticas centralistas e burocráticas, como as do Governo da “geringonça” que não cumpre a Constituição, com que é que então se gloriam? Parece que o novo partido da Iniciativa Liberal vem representar outro vigor na defesa destes princípios mais democráticos porque mais participativos. Se assim for, é constitucionalmente bem-vindo. E por isso, de um modo ou de outro, vai ficar na nossa história.
10. Em conclusão: ainda mesmo numa reflexão muito breve, a democracia do livro de Arnaud e Semedo, bem como a dos partidos da geringonça que concordam com Arnaud e Semedo aprovando uma nova lei do SNS na inclinação de um monopólio de Estado, revela-se diametralmente contrária à democracia que a Constituição expressamente impõe como devendo ser baseada na dignidade da pessoa humana, pluralista, “aprofundadamente participativa”, na virtuosa harmonização duma Sociedade Civil dignamente activa com um Estado subsidiário (passiva e activamente subsidiário).
11. Como estamos a terminar uma legislatura em que, não só pelo exemplo referido da nova lei do SNS, mas ainda por vários outros casos, designadamente na área da educação escolar e da economia, os partidos da geringonça que suportaram o Governo deram provas de seguir uma orientação democrática anti-constitucional (porque centralista-burocrática, anti-pluralista e anti-participativa), é caso para deixar aqui uma avaliação negativa desta governação que desrespeita a Constituição nos seus “Princípios Fundamentais” — “Princípios Fundamentais” é exactamente a rubrica do primeiro apartado da Constituição onde se contêm as disposições normativas que acima foram citadas.
12. Sim, é verdade, bem sabemos que a economia e o emprego não estiveram mal, durante a legislatura. Mas, tirando o mérito do Doutor Centeno, que faz recordar os antigos méritos do Doutor Salazar nas Finanças dos anos trinta, a economia e o emprego não foram obra deste Governo, que a bem dizer nem teve ministro da Economia. O andamento da economia e do emprego (e, por consequência, da receita fiscal, que aliás recebeu alguma ajuda de agravamentos), foi um feito da sociedade civil portuguesa e da conjuntura europeia e mundial. Daquela sociedade civil que os partidos da geringonça acham que não deve participar no SNS. Nem no sistema educativo. Nem em sectores importantes do tecido empresarial. Repita-se: tirando o mérito financista do Doutor Centeno, aliás por via da drástica redução do investimento público, do aumento do endividamento mas com o benefício do “boom” do turismo e de juros mínimos (e agora já negativos) à sua dívida, o saldo negativo deste governo foi o de, à custa da economia que não é obra sua, ter aumentado o centralismo do Estado, contra a Constituição, a favor (como aliás é típico) de um populismo demagógico eleitoralista e da degradação das instituições.
13. Ora, atenção! Esta questão democrática, que defronta o centralismo de Estado que desenvolve políticas populistas e clientelares, não é simplesmente teórica. É muito prática e é muito séria. Porque, em vários casos, a história mostra bem que o eleitorado pode cair em “vender” a sua primogenitura por um prato de lentilhas.