O nosso regime democrático pluralista está quase a chegar aos 50 anos no meio de uma crise sem precedentes. A atual Constituição está em vigor desde 1976. No período constitucional da história política de Portugal, que se inicia em 1822, só a Carta Constitucional de 1826 esteve mais tempo em vigor do que a atual Constituição. No entanto, o regime português dá sinais de estar seriamente abalado num contexto internacional muito desfavorável. Está em risco? Está, se os partidos centrais, os moderados se deixarem arrastar e condicionar por extremismos. Uma mudança de regime sabe-se como começa, nunca se sabe como acaba.

Como caem regimes?

A queda da Monarquia Constitucional, em 1910, da Primeira República, em 1926, e do Estado Novo, em 1974, correspondem a um certo padrão. Primeiro, todos eles foram derrubados por um golpe militar. Esse risco, hoje, parece afastado. Mas nos últimos tempos até temos visto aflorar nalguns militares – inclusive em comunicados de associações de sargentos e oficiais – um discurso próximo de golpismos anteriores, revelando uma ausência da noção do que sejam as regras básicas numa democracia de subordinação dos militares no ativo à tutela do poder civil eleito. Dizem-me que são pouco representativos, quero crer que sim, mas numa situação de crises cumulativas… Também temos uma Procuradora-Geral da República que defende uma doutrina delirante de total imunidade ao escrutínio, ainda mais extrema do que a defendida por Donald Trump relativamente à presidência norte-americana, e incompatível com uma democracia plena.

A verdade é que não há golpe militar bem-sucedido porque apetece a uns quantos militares tomar o poder pela força. Um fator fundamental para abrir espaço ao golpismo é a fragmentação do sistema político, uma crescente dificuldade em formar governo, em governar eficazmente e em responder a novos desafios económicos e sociais. É crucial também uma divisão crescente e extremada das elites. Os escândalos são um sintoma destes problemas e agravam-nos. Foi assim na questão dos adiantamentos e na concessão do monopólio dos tabacos no final da Monarquia, até, novamente, o monopólio dos tabacos e o caso Alves Reis de fraude bancária em grande escala no final da Primeira República. Durante o Estado Novo, “graças” à censura, “não havia” escândalos ou corrupção e tráfico de influências. Mas claro que eles existiam, e alguns deles, mesmo abafados, por exemplo o chamado caso Ballet Rose, tiveram algum eco no país. Podemos estar hoje no mesmo caminho? Certamente tem havido escândalos. Certamente temos uma elite fragmentada e em frequentes choques públicos. Também temos uma absurda mas preponderante doutrina política que transforma o compromisso entre moderados num tabu.

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O fantasma do Bloco Central que daria força aos extremos

Em Portugal parece ser artigo de fé que a criação de um Bloco Central centrista é fatal para a democracia e ideal para os extremos, levando necessariamente ao fortalecimento da extrema esquerda e da extrema direita. Nunca vi esta teoria sustentada em dados sólidos. Com os factos históricos que conheço não me parece ter grande base. Em Portugal houve um governo de Bloco Central, combinando os partidos centrais da esquerda e da direita, entre 1983-85. Isso não levou ao fortalecimento dos extremos, pelo contrário, os dois partidos centrais – o PS e o PSD – resolveram uma crise complicada, e depois continuaram a dominar, alternadamente, a política portuguesa.

No resto da Europa também não vejo a teoria a funcionar. Após a Segunda Guerra Mundial, durante décadas, houve muitos governos de “bloco central” nos países da Europa Ocidental e do Norte, onde os governos de coligação são a regra, sem que isso tivesse levado à subida dos extremos. Um exemplo recente, por vezes referido erroneamente como favorável a esta tese, é o dos Países Baixos. Ora, é certo que o liberal Mark Rutte chegou, no passado, a governar em Bloco Central com os socialistas holandeses. Mas o último governo Rutte era uma coligação de direitas com incerto apoio parlamentar da direita radical. Foi da paralisia e da queda deste último governo que resultaram as eleições antecipadas deste ano, que redundaram numa vitória histórica, não da oposição socialista, mas da direita radical populista de Geert Wilders. Note-se que está longe de ser evidente, para já, que isso permita a Wilders formar um governo viável. Não é impossível que nos Países Baixos a solução acabe por ser um novo governo ou acordo parlamentar de… Bloco Central.

Os fatores que levaram a uma tendência geral a nível europeu, e até global, de subida dos extremos populistas – da esquerda e, sobretudo, da direita – não têm nada a ver com um Bloco Central. Resultam, em primeiro lugar, da frustração com uma séria avaria do elevador da mobilidade social. De crises sucessivas vistas por muitos como reveladoras de incompetência e corrupção das elites dominantes. Isso leva muitos a procurar alternativas radicais. Ora, não há nada mais fora do sistema partidário dominante no Ocidente depois de 1945 do que a direita radical. Muitos destes partidos viram-se marginalizados durante décadas pela realidade ou suspeita de colaboração com o nazismo ou o fascismo contra os quais a nova ordem política pós-Segunda Guerra Mundial foi contruída. O grande risco para a viabilidade do regime português não é o Bloco Central. O grande risco é um sistema político e económico que deixe de ser visto como capaz de responder com eficácia pragmática às ambições de progresso e prosperidade de todos.

Os extremos também se abatem

É perfeitamente legítimo preferir a clareza ideológica de governos de uma só cor partidária (naturalmente, a nossa). Mas como ficou visto com este governo do PS, isso não é garantia de estabilidade no contexto atual de poder muito fragmentado e grandes tensões entre elites. Sobretudo a fragmentação crescente do sistema político e a crescente inevitabilidade de governos de coligação parecem ser cada vez mais a regra por toda a Europa. Também no resto da Europa isso passa, por regra, por negociações demoradas e de geometria variável, mas que não excluem, à partida, acordos ao centro. Veja-se as negociações que levaram à coligação hoje no poder na Alemanha entre Socialistas, Liberais e Verdes. Nelas é ponderada a força relativa dos partidos para se acordar um programa de governo com base em compromissos que permitam a convergência em torno de algumas das propostas chave de cada um. Aparentemente, em Portugal há um quase total consenso de que isso é “demasiado avançado” para os nossos hábitos políticos. Aparentemente, há muito quem ache que o que está bem para o nosso nível é primeiro ganhar as eleições com um programa qualquer e uns slogans e, depois, governa-se conforme calhar.

José Luís Carneiro veio desafiar esse consenso. Não ao ponto suicida, dado o consenso prevalecente, de defender um Bloco Central no governo. Mas, pelo menos, defendeu a possibilidade de fazer acordos com quem, à sua esquerda ou direita, mais se aproxima de certas propostas políticas concretas e prioritárias. Não estou nada certo de que seja a forma de conquistar uma eleição partidária em que a força tranquila da competência parece contar menos do que a força bruta do soundbite. Estou certo de que seria bom que se tornasse a regra, pelo menos nos dois partidos centrais do nosso sistema político. Isso dar-lhes-ia margem de manobra face à chantagem dos extremos. Permitiria preservar uma sólida política externa e de defesa atlantista e europeísta num momento de crise global. Isso seria bom para um país que não pode arriscar aventuras radicais. Isso será indispensável se o atual sistema político quiser sobreviver e mostrar uma eficácia que reduza o encanto do canto de sereia dos extremos populistas.