A desinformação é identificada como o maior risco nos próximos dois anos – e aquele que mais subiu no ranking – no Global Risks Report 2024 do World Economic Forum, cujo encontro se iniciou esta semana em Davos. Nos dois anos em que três mil milhões de pessoas vão votar no mundo – grupo onde também estamos, tal como a Índia, mas em que assumem especial relevo os EUA -, “ a desinformação pode perturbar de forma radical os processos eleitorais”, lê-se no relatório.
A perspetiva é que “uma crescente desconfiança na informação, nomeadamente nos media e nos governos, agravará a polarização de pontos de vista, num círculo vicioso que pode desencadear agitação social e possíveis confrontos”. E os governos enfrentam o conflito entre a regulamentação e a liberdade de expressão, com problemas a levantarem-se quer quando escolhem dar mais peso a uma ou a outra opção. “Existe um risco de repressão e erosão dos direitos, à medida que as autoridades tentam controlar e reprimir a proliferação de informações falsas”, lê-se no relatório, existindo igualmente riscos associados à inação.
Em causa está a facilidade e eficácia com que, através de Inteligência Artificial, se constrói informação falsa que parece verdadeira, desde a clonagem da voz aos conteúdos “sintéticos”, passando pela falsificação de sites. Esta proliferação de falsa informação alavanca, obviamente, os riscos de polarização das sociedades e a agitação social.
A necessidade de combater a desinformação pode acabar por desembocar em censura e autoritarismo, com os governos a definirem o que é verdade. Mesmo as democracias maduras estão em risco. O relatório dá o exemplo do caso do Twitter e do YouTube que, no início do ano passado, retiraram das suas plataformas um documentário da BCC sobre a Índia que era crítico de Narendra Modi.
O jornalismo poderia ser uma poderosa arma no contributo ao combate a estes riscos, especialmente nas democracias maduras que valorizam a liberdade de expressão, apostando e reforçando o seu papel de investigação e como validador de informação. Mas, além de ser também um alvo de desconfiança, “a imprensa livre está em queda e existe uma falta de jornalismo de investigação”. E todos sabemos porque isso acontece: o tradicional modelo de negócio dos media colapsou, por via das grandes tecnológicas e redes sociais. Mas nem tudo em todo o lado e com todos os grupos é apenas da responsabilidade das GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft).
É assim que chegamos aos grupos de media em Portugal e ao que se está a passar na Global Media, mas também na Visão – um caso mediaticamente mais esquecido – ou aconteceu no Diário Económico e no grupo Impala. Sobre a assimetria no tratamento dos casos vale a pena ler “ Contos exemplares: o caos na Global Media” de Bruno Faria Lopes no Jornal de Negócios, que também escreve sobre o que se passou, e não se fez, no grupo que detém, entre outros meios, o Diário de Noticias, o Jornal de Notícias e a TSF.
Toda a vida recente Global Media, desde a sua compra por Joaquim Oliveira, como se pode ler neste trabalho de Ana Suspiro, era um desastre à espera de acontecer e ao qual todos fecharam os olhos.
O grupo teve uma gestão estratégica que seria suicida em qualquer sector e por maioria de razão quando se está num em que não há margem para erros – como estar a mudar com elevada frequência o perfil das publicações como aconteceu no Diário de Notícias, mas também no Jornal de Notícias onde a informação de proximidade era tão importante. Mais tarde, outros accionistas resolveram passar o DN a semanário e apostar numa plataforma de vídeo e de jogos – altura em que entrou, em 2017, o ainda accionista empresário de Macau Kevin Ho. Antes disso já o grupo tinha tido como accionistas o empresário angolano António Mosquito e Luís Montez.
Paralelamente vamos assistindo à venda de activos. Em 2016 é vendida a emblemática sede do Diário de Notícias e em 2018 a do Jornal de Notícias. O que se fez a esse dinheiro é alvo de informação contraditória – foi para pagar aos bancos, dizem uns. A revista Sábado revelava em 2019 que a sede do JN foi vendida a um dos accionistas, Kevin Ho. Em 2020 entra Marco Galinha e mais recentemente o grupo passa a ter também como accionista o World Opportunity Fund, com sede nas Bahamas.
Com este resumido retrato do que foi acontecendo ao Grupo, vemos como tudo se foi desenrolando perante os nossos olhos, sem que nada acontecesse. O mais grave é a total ausência da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), ainda que na alteração recente de accionsitas possa ser desculpabilizada porque estava num vazio de poder por falta de nomeação dos seus membros. Mas infelizmente a ERC não tem dado provas de coragem, o que aliás não é caso único entre os reguladores. Quem nos governou recentemente, aliás, tem algumas responsabilidades por ter querido tudo controlar.
A líder do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua classificou esta última aquisição como “um caso de polícia”, mas toda a história recente do grupo se aproxima disso ou, no mínimo, é marcada por incompetência e comportamentos éticos e morais pouco dignos na era da gestão responsável.
A solução não passa obviamente pela nacionalização do grupo, nem que seja por se estar a dar um prémio a quem parece ter andado a desnatar a empresa e a quem foi incompetente a geri-la. Mas passa por uma regulação atenta e algumas medidas de política pública que paguem a externalidade positiva de uma comunicação social livre e forte.
Quando vivemos numa era de elevados riscos de informação falsa e desinformação, os grupos de comunicação social podem e devem ter uma importância crescente. A regulação – como por exemplo a que a União Europeia quer levar a cabo no domínio da Inteligência Artificial – é importante, desde que seja feita com equilíbrio na defesa da liberdade de expressão. Mas há nas nossas sociedades protagonistas que podem contribuir para esse equilíbrio, entre o combate à desinformação e a liberdade, e eles chamam-se jornalistas e órgãos de comunicação social.
Não é fácil garantir a sua solidez financeira e a propriedade pelo Estado não é solução. Mas há algumas medidas que se podem tomar, como a campanhas de literacia financeira, a dedução no IRS de assinaturas nos jornais ou até majoração dos gastos das empresas em publicidade nos órgãos de comunicação social registados na ERC. E as autoridades podem pelo menos estar mais atentas e activas ao mais pequeno sinal de entrada de accionistas que pouco se interessam em garantir uma informação livre, que escrutine os poderes públicos e sirva os cidadãos, acabando por ameaçar a sobrevivência de um grupo.
Hoje como nunca no passado precisamos de jornais, televisões e rádios com jornalistas livres e com tempo para desempenharem o seu papel de sempre, informar com rigor e exactidão, ouvindo todas as partes, e contribuindo ainda para o combate de um dos maiores e mais graves riscos da era actual, a manipulação e a informação falsa.