O 25 de Abril de 1974 (e o que veio depois) não visava apenas estabelecer a democracia. Tinha também como intenção direccionar Portugal de África para a Europa. O fim da guerra colonial e a independência das colónias foram os primeiros passos nesse sentido, seguidos da integração de Portugal na CEE, em 1986. A visão de políticos como Francisco Sá Carneiro e Mário Soares implicava um Portugal europeu com padrões de vida europeus. O ponto foi tal que, aquando da adesão à CEE, se contava que em 20 anos Portugal atingiria o nível dos mais ricos da Europa. Depois da democratização e da descolonização, o terceiro ‘D’, dizia respeito ao desenvolvimento. O dinheiro que se perspectivava com os fundos europeus seria crucial e não havia motivos (temos esta tendência de ignorar a história) para falhar.

Hoje sabemos que sim: que falhámos.

Falhámos na democracia porque esta evoluiu muito pouco desde 1974/76. Os deputados continuam a ser escolhidos pelas direcções partidárias e a sua possível eleição através de círculos uninominais não passou do papel; os políticos estão cada vez mais afastados das preocupações do cidadão comum que não vive à sombra do poder estatal; também não se procedeu à descentralização do Estado. Esta pressupõe descentralização fiscal, mas não houve até ao momento interesse em atribuir aos municípios o monopólio (e responsabilização política) para o lançamento, a liquidação e a cobrança dos impostos municipais; falhámos na transparência porque o país continua opaco tal como era no Estado Novo. Demonstram-no os casos de corrupção, as prescrições, o negócio que, em nome do Estado se fez com Berardo. Um dos casos mais exemplares dessa opacidade foi a amnistia das FP-25, como demonstra o livro de Nuno Gonçalo Poças, ‘Presos Por Um Fio’. O caso das FP-25 é exemplar porque o poder político teve um papel preponderante na amnistia. A opacidade não surgiu no seguimento de um erro judiciário ou de uma tecnicidade jurídica. Foi politicamente intencional.

Falhámos porque continuamos um país de corporações. Basta ligar o noticiário, seja na televisão  ou na rádio, e assistir ao rodopio de presidentes, representantes e líderes de associações, corporações, ordens profissionais e sindicatos, todos e cada um exigindo do Estado a sua quota-parte. É interessante (e bem que podia ser caso de estudo) que a tão propagada igualdade tenha degenerado na existência de feudos em que cada um tenta o seu quinhão à custa do outro. Os últimos meses deram-nos dois exemplos disso mesmo: a prioridade na vacinação dada aos professores (houve professores com vinte e poucos anos vacinados antes de pessoas que com mais de 70 corriam o risco de  morrer se infectados com a Covid-19) e o privilégio no tratamento concedido à TAP. O falhanço é de tal ordem que depois de termos de pagar as dívidas do BES o governo decidiu que era tempo de pagarmos também as da TAP. Trabalhamos para isto e não para nós e para as nossas famílias porque, 47 anos depois, a liberdade de usarmos o dinheiro que ganhámos com o nosso esforço ainda é mal vista.

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Falhámos na Europa porque não mudámos. Não mudámos porque não fomos capazes de impedir que o Estado fosse tomado de assalto. Quisemos o bom e o fácil, mas nunca o óptimo e o difícil. Recebemos fundos, fizemos obras mas não reformamos o Estado. Pelo contrário, combateu-se a pobreza empregando pessoas e mais pessoas no Estado que depois precisou de dinheiro e mais dinheiro dos pobres coitados que, ou não conseguiram entrar no grupo ou se recusaram a fazê-lo. A liberdade tem um preço. A democracia outro e não é difícil perceber que boa parte do eleitorado, porque depende do Estado e do poder político, vota primeiro no seu interesse imediato e esquece o interesse colectivo. Um resultado que também merecia uma análise mais aprofundada se tivermos em conta o que se pretendeu com o 25 de Abril.

Aderimos ao euro porque o escudo era o espelho das nossas fracas instituições. Instituições permeáveis ao poder político, instituições que não garantem a transparência. Aderimos ao euro com o intuito (e a esperança) de nos libertarmos desse vício, dessa maleita, mas não mudámos o suficiente para que tirássemos o melhor proveito de uma moeda forte. De certa forma, à semelhança da Hungria, traímos o ideal europeu que prometemos seguir. É certo que no nosso caso não estão em causa violações ao conceito de Estado de Direito, mas sim à seriedade que se exige a quem queira estar na Europa. O sonho europeu (de que tantos falam) não são só palavras bonitas de solidariedade, mas trabalho, exigência, esforço, poupança, planeamento do futuro; de um futuro sustentável.

A maior evidência de que falhámos no desenvolvimento está na falta de perspectivas de futuro. O que temos é dívida, dívida e mais dívida. Os três D. Compare-se Portugal com a República Checa, que até à pandemia apresentava uma taxa de crescimento económico superior à portuguesa e com uma dívida pública de 30% do PIB em 2019. Vejam bem, não são 130%; apenas e tão só 30%. Recordam-se das palavras críticas proferidas em 2010 pelo então presidente Checo e relativas ao nosso défice? Quando tal sucedeu o país, que ainda tinha José Sócrates como chefe do governo, indignou-se porque o falar alto é a melhor forma de não se reconhecer o erro. O euro poderia ter sido um instrumento fabuloso para ajudar ao desenvolvimento (verdadeiro, sustentado) se a produtividade tivesse evoluído, o que não aconteceu porque não temos capital. A forma como destruímos o capital, como o odiámos e como o país penalizou quem o detinha; a forma como castigámos quem investiu, não é culpa do euro. Não é culpa da Alemanha, nem da Holanda. É culpa do país que vive desta maneira. Não esqueçamos o seguinte: Mesmo seu euro, Portugal estaria endividado e a precisar de ajuda externa como sucedeu aquando das outras duas ajudas do FMI. Sem o euro, e o pouco investimento que ainda houve ter-se-ia dissipado. Porquê? Voltamos sempre ao mesmo: por falta de capital. O capital, esse pecado mortal que a esquerda detesta.

Dizem-me que se vive melhor hoje que em 1974. Claro que sim. Como também se vivia melhor em 1974 que em 1927. E em 1927 que em 1880 e por aí fora. Tal como na China hoje se vive melhor que em 1974. E no Brasil, nos EUA, na Rússia e até em França. Possivelmente, os únicos países onde actualmente se vive pior que há 47 anos são a Venezuela, a Síria, o Líbano e a Coreia do Norte. Nos restantes vive-se melhor que em 1974 porque o mundo evoluiu para melhor. Naturalmente que em Portugal o progresso não caiu do céu (os fundos europeus também deram uma ajuda). O que sucede foi que o custo (a dívida pública que ultrapassa os 130% do PIB e que vai aumentar nos próximos anos) hipotecou o país. Pior: impossibilita que as novas gerações, a começar pelos que têm menos de 30 anos e a acabar nos que ainda não nasceram, beneficiem da melhoria de vida equivalente àquela que presenciámos nos anos 80 e 90. O encargo que lhes deixamos é tal que uma criança portuguesa que queira ser verdadeiramente livre, usufruir verdadeiramente do privilégio que é ser livre, terá de sair do país. Ora, isto não é um sucesso. Quando temos a boca cheia da palavra liberdade não é algo com que nos possamos congratular. É um falhanço clamoroso que nos deve fazer pensar.

Apesar de tudo não vivemos num país falhado. Falhámos apenas uma experiência. A Constituição menciona no seu Preâmbulo que ao Estado cabe ‘abrir o caminho para uma sociedade socialista’. Perante um fracasso tão evidente, a resposta até se encontra no documento basilar do regime.