O caso lar de Reguengos deve ser interpretado como um forte grito de alerta para o modelo de apoio à terceira idade. A forma como cuidamos de quem de nós cuidou revela não só o sentido de solidariedade que temos para com os mais velhos, como também a ideia de sociedade que queremos deixar aos nossos filhos.

O que se passou em Reguengos é muito grave, é um abalo sísmico na confiança depositada no sector social, com réplica sobre a tutela, a quem compete a fiscalização. Mais uma vez, as máquinas de comunicação e os focus group do partido do poder conseguiram desviar a discussão. Promoveram o debate sobre o acessório, criaram uma realidade alternativa, deslocaram os holofotes para o relatório da Ordem dos Médicos, não para o seu conteúdo, mas para a sua legitimidade.

Com mais ou menos legitimidade formal, é o único que existe e é muito estranho que os poderes públicos que o contestam não questionem o seu conteúdo, escondendo-se na forma. O relatório repete várias vezes a palavra “atraso”. Tudo atrasou, desde os cuidados de saúde até à mais elementar higiene. Se há bem escasso para as pessoas de idade avançada é o tempo; o atraso não significa apenas chegar tarde, pode significar não chegar.

A este propósito, a ministra da Segurança Social afirmou que a prioridade do ministério não era responsabilizar. É pena, revela falta de sensibilidade para um sector extremamente delicado, com especificidades únicas, onde os beneficiários estão em posição frágil, não têm meios para escolher o lar, submetendo-se a ser escolhidos.  É de uma injustiça atroz, ao fim de uma vida de trabalho, a pessoa ter de se sujeitar ao que está disponível, sem poder decidir, sem poder exigir, sem poder escolher. Esta fragilidade deveria obrigar a tutela a fiscalizar e responsabilizar quem não actua com diligência, sabendo que os utentes estão desprovidos desse poder.

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É neste ângulo que importa reflectir: faz sentido o modelo de financiamento actual? Faz sentido que os apoios do Estado sejam dados directamente às instituições ao invés de serem um crédito de cada pessoa, em função da sua necessidade, e que será atribuído a quem indicarem? Atribuir o poder de escolha aos utentes é o maior instrumento de fiscalização e de responsabilização que se pode criar. Obriga a uma inversão de paradigma: serão os lares que terão de conquistar a confiança dos utentes, serão avaliados por quem deles precisa e só receberão apoios do Estado se forem escolhidos por quem detém esse crédito. Não podemos permitir que a situação de dependência em que se encontram as pessoas mais frágeis possa ser aproveitada por quem procura o lucro fácil.

A fundação que detém o lar de Reguengos recebeu do Estado, para apoio à terceira idade, cerca de um milhão de euros, conforme consta do relatório e contas de 2019. O mesmo valor permitiria a cada pessoa receber um crédito de 700€ e, com esse apoio, poderia livremente escolher a instituição ou a forma como receberia os cuidados de que precisa.

O novo modelo de financiamento não implica aumento de custos, mas proporciona maior eficiência, qualidade de serviço e, mais importante, resgata a liberdade de escolha, direito que a idade não pode roubar. Todavia, vai encontrar oposição em todos os que criaram um “estado” dentro do Estado. Terá como fortes adversários as teias de poder que se instalaram à mesa do Orçamento, os circuitos de influências que gravitam à volta do poder político e dele se servem para proveito próprio. São máquinas de poder que se desenvolveram abrigadas na ideia instalada de que os subsídios públicos são um favor do Estado. É neste pressuposto que se estimula o apetite dos aparelhos partidários em ocuparem posições nas instituições sociais, esperando obter no voto a recompensa pelos serviços prestados.

É nesta subversão que se perde o objectivo original: garantir cuidados a quem se encontra em situação de dependência. Confunde-se, propositadamente, “Estado garante” com “Estado prestador”. O “Estado garante” é um direito reconhecido pelas sociedades solidárias e com forte sentido de justiça social, o “Estado prestador” é uma utilização abusiva e interesseira da fragilidade das pessoas, convertendo em favor aquilo que lhes pertence por direito. Porque a idade já rouba muita coisa, não pode roubar também a dignidade.