Março e Abril foram meses de verdadeiro pandemónio. Praticamente toda a Europa viveu confinada, sendo-nos apenas permitido observar hospitais lotados, serviços nacionais de saúde em caos, hospitais de campanha erguidos e um cenário que fazia lembrar as ilustrações dos livros de História do ensino básico sobre os períodos de guerra.

Aos poucos, felizmente, essa calamidade foi-se dissipando, retomando-se gradualmente uma normalidade bastante condicionada.

Mas estará este estado de caos na saúde pública totalmente ultrapassado? O que vemos na Austrália, Japão ou Bélgica, com o aparecimento de novos surtos e hospitais novamente sobrelotados, não aponta nesse sentido. Adicionalmente, quando as infeções por Covid-19 se sobrepuserem ao pico normal da gripe, estaremos, provavelmente, perante o perigo iminente de regressar ao descalabro de saúde pública a que assistimos na Europa em abril e que ainda perdura em vários países do mundo, nomeadamente na Índia, no Brasil, ou na Colômbia. Se a isso adicionarmos médicos e profissionais de saúde bem mais desgastados para uma segunda dose de stress e restrições, o pandemónio na saúde poderá ser uma realidade e de forma bem mais intensa do que aquela a que já assistimos.

Em simultâneo, a pandemia invadiu-nos de angústias, dúvidas e receios. Aquilo que todos dávamos como certo, revelou-se, de repente, incerto, debilitando a resiliência emocional de grande parte da população. A dor pela perda de familiares ou amigos, a impossibilidade da despedida, o isolamento, a perda ou receio de perda do emprego, entre outros fatores, fizeram com que metade dos portugueses tenha afirmado sentir-se psicologicamente afetado pela Covid-19 (dados de abril – como será agora?). Aliás, quando ansiolíticos e antidepressivos estão esgotados em Portugal, é sinal de que a procura é maior do que a oferta.

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Trata-se, talvez, do primeiro exame à teoria de Darwin aplicada à humanidade – aqueles que têm maior capacidade de se adaptar à mudança, a este novo contexto tão estranho, terão maior probabilidade de “sobrevivência”. A sensação de “quanto mais tempo fico em casa, mais me sinto sem-abrigo” é um sintoma deste pandemónio psicológico – que, infelizmente, não tem vacina. O curioso (ou não) é que esses que se sentem sem-abrigo na sua própria casa até poderão ser os “sortudos” deste paradigma, quando comparados com aqueles que ficaram literalmente sem-abrigo (ou estão nessa iminência). E isso leva-nos à terceira dimensão do pandemónio: o económico-social.

A contração económica no segundo trimestre do ano de 2020 foi demasiado avassaladora: uma produção de riqueza de menos 16,5% face a igual período do ano anterior é algo sem precedentes. E com essa contração económica, milhares de jovens não conseguiram encontrar o primeiro emprego e muitas outras pessoas acabaram por perder os seus rendimentos.  Não é novidade nenhuma que os setores mais fustigados foram os do turismo, restauração e afins, onde habitualmente os colaboradores vivem de salários baixos e em condições laborais precárias. Mas mais do que retratar aquilo que sabemos ter acontecido nos últimos meses, importa perceber o que aí vem.

Imagine-se que a pandemia acabaria hoje: se assim fosse, conseguiríamos ter a robustez económica para repor rapidamente níveis de produção e os postos de trabalho pré-Covid? Conseguiríamos gerar a riqueza perdida num curto espaço de tempo? A resposta é óbvia: não. Não só porque não teríamos essa capacidade pelas deficiências internas que bem conhecemos, mas também porque estamos inseridos num contexto global, no qual a contração económica foi igualmente enorme. O problema é que a pandemia não só não termina hoje, como pelo que já vimos acima, está aí para durar e, aparentemente, vai ter consequências bem mais graves do que as que se verificaram até agora. Se alguns países da Europa já estão a voltar a tomar medidas mais restritivas, como o regresso ao recolher obrigatório, mais efeitos nefastos se sentirão na economia. E na sociedade. Este efeito de bola de neve alastrar-se-á a vários setores da economia, que irão também tendencialmente dispensar os seus trabalhadores e, consequentemente, impactando a riqueza gerada. E a bola de neve continuará a crescer, lado a lado com os pandemónios da saúde pública e mental acima descritos.

A pandemia está aí para acentuar as desigualdades, onde as classes mais baixas poderão estar em risco de pobreza extrema e miséria.  E se no nosso país a desigualdade social já tem sido uma realidade e um entrave ao crescimento e ao desenvolvimento sustentável – o Índice de Gini, que mede a desigualdade de rendimentos entre as pessoas, é pior em Portugal do que a média europeia e fica atrás de países como a Estónia ou o Chipre – como será agora com uma discrepância ainda mais acentuada?

O pandemónio sanitário e psicológico, económico e social ainda está, portanto, para vir. E muitos outros dramas estariam ainda por abordar, como a redução da dinamização cultural, os desastres naturais que não escolhem o momento para ocorrer, etc.

E o que podemos fazer para atenuar o pandemónio?

Em primeiro lugar, importa preparar e dotar o nosso SNS para a famosa segunda vaga. A organização de recursos (humanos, tecnológicos, equipamentos, etc.) será fundamental para criar uma estrutura suficientemente robusta que dê resposta a um pico previsto para os últimos meses do ano, sem comprometer o “business as usual” da saúde no nosso país. Este planeamento deve ser desenhado de forma holística de modo a incluir os serviços de saúde mental, tão importantes neste contexto atual.

Em segundo lugar, importa aproveitar devidamente a “bazuca” dos fundos europeus para gerar uma melhor distribuição da riqueza, dando os recursos às pessoas para evitar cataclismos sociais, bem como fornecer o devido apoio ao tecido empresarial e industrial do país, que precisa de se revitalizar, setor fundamental para criar riqueza e emprego.

Mas não basta confiar nos agentes políticos para resolver este panorama. Cada um de nós pode e deve procurar dar o seu pequeno contributo, procurando nas suas comunidades locais, ou até mesmo criando pequenas iniciativas para ajudar os mais necessitados. O empreendedorismo social é agora mais urgente do que nunca. A solidariedade, caridade e alguma clarividência de espírito são fundamentais para construirmos uma sociedade com os valores necessários para enfrentar a verdadeira crise que se aproxima. É crucial estarmos disponíveis para ajudar a comunidade, mantendo sempre as precauções e cuidados que a pandemia exige.

Ah! E por fim, algum otimismo e esperança – algo que este artigo de opinião não cumpre!