Além do número das vítimas, mais de uma semana depois continuamos sem saber quase nada do que se passou. E, se na semana passada era um pouco irresponsável escrever sobre a tragédia, porque a informação era escassa, continuar esta semana com tão poucos dados parece anormal. Cheira a esturro (literal e metaforicamente).
Adicionalmente, a chicana política está ao rubro, com o ensandecimento dos principais actores políticos. Temos um primeiro-ministro a fazer perguntas em público, sendo desautorizado com respostas vagas e incompletas, e exigindo depois explicações à sua ministra da Administração Interna, a quem dera um voto de confiança uns dias antes. Temos um líder da oposição que…, enfim, mais vale não dizer nada. E temos um Governo que afirma ter convidado todos os partidos para uma reunião sobre incêndios ao mesmo tempo que o maior partido representado no parlamento se queixa de não ter sido convidado. No meio desta trica política, com “notícias” plantadas em jornais espanhóis e com comentadores a falar em assassínios e homicídios, estão reunidas as condições para ser impossível acreditar em qualquer relatório oficial sobre o assunto. Todos procurarão sacudir a água do capote. Já tínhamos percebido isso com as respostas evasivas que a GNR deu ao primeiro-ministro. Mas o desplante atingiu um novo patamar com o relatório do SIRESP, noticiado ontem.
Apesar de já sabermos que as comunicações falharam, o relatório do SIRESP diz-nos que o “desempenho da rede esteve à altura da complexidade do teatro das operações” e que o serviço “não teve interrupções”. Lendo o relatório, rapidamente se percebe que não é um leigo que pode opinar sobre ele. Por exemplo, fala-se em Estações Base a operar em modo local, o que deve querer dizer que se perdeu a comunicação com a central de operações, possivelmente um eufemismo para «o sistema falhou». Mas, com honestidade, sou obrigado a reconhecer que não sei como interpretar. Terei de esperar que algum especialista explique.
Também o relatório da Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI) é um tratado de desresponsabilização: “Os procedimentos operacionais estabelecidos em vigor na SGMAI e em particular no Centro de Operação e Gestão foram cumpridos”; “a Autoridade Nacional de Proteção Civil ao verificar que a situação se estava a tornar excepcional requisitando mais meios de combate ao incêndio, deveria também em simultâneo ter solicitado preventivamente a mobilização da estação móvel em tempo útil”; “A SGMAI não estava informada que a Estação Móvel confiada à PSP já se encontrava na oficina, para revisão mecânica agendada para dia 19, 2ª feira, sem ter sido salvaguardada pela PSP a possibilidade da viatura poder ser mobilizada logo que necessária”; etc.
Se vamos ter os responsáveis políticos a fazer pura chicana, os directamente envolvidos num exercício de passa-culpas e os comentadores a gritar «assassínio», não vai ser possível averiguar objectivamente os factos. Qualquer que seja a verdade, muitos não a aceitarão. Recusarão um inquérito que conclua que esta tragédia foi apenas o resultado de um fenómeno meteorológico extremo (combinado com o pânico de quem o viveu). Um resultado destes levaria os portugueses a pensar que, como sempre, a culpa morria solteira. À esquerda, ninguém aceitará que a responsabilidade seja deste governo. À direita, ninguém aceitará que as culpas fiquem com o governo anterior. Se o resultado do inquérito apontasse o dedo a uma corporação (seja os bombeiros, seja a GNR, seja o que for), muitos pensariam que os políticos, mais uma vez, se safavam entre os pingos da chuva. Se se apontassem falhas de coordenação, a culpa seria dos governos, que mudam as chefias ao sabor dos ventos políticos, etc., etc..
Mas uma tragédia desta dimensão exige o apuramento de responsabilidades e é mesmo necessário saber a sua causa. Não só por respeito aos mortos, mas também para segurança dos vivos. Se a causa foi um fenómeno meteorológico extremo, temos de redimensionar os nossos sistemas de segurança, dado que, com o aquecimento global, eles acontecerão mais frequentemente. Se a culpa é do desordenamento florestal, então não podemos pensar que políticas com efeitos a 30 ou 40 anos são suficientes. Se houve descoordenações, é necessário saber como evitá-las. Se foi amadorismo dos bombeiros, é necessário profissionalizá-los e recorrer menos ao voluntariado.
Seja qual for a verdadeira razão – ou razões – temos de a(s) encontrar para evitar uma tragédia semelhante. Uma comissão independente irá ler os relatórios do SIRESP e do SGMAI mas irá confrontá-los com os testemunhos de bombeiros e GNR. Interrogará peritos que percebam se eufemismos como «modo de serviço local» ou «modo directo (walkie talkie)» significam um falhanço do sistema ou não. Irá analisar o plano de acção definido pelo anterior governo para a correcção das falhas do SIRESP para saber se era suficiente e se foi aplicado ou não (e, tendo sido, se houve falhas na sua aplicação).
Se queremos respostas objectivas, que sejam aceites pela generalidade da população, necessitamos de uma comissão verdadeiramente independente. E como, se do parlamento já não se espera nada? Nuno Garoupa, no programa Conversas Cruzadas da Rádio Renascença de domingo, fez uma proposta conceptualmente adequada. A comissão deve integrar (não só, mas também) especialistas que não trabalhem em Portugal, evitando assim conflitos de interesses. Crucialmente, para garantir a independência e autonomia desta comissão, Garoupa sugeriu que fosse presidida e coordenada pelo Presidente da República. Ontem, no Diário de Notícias, concretizou a sua proposta, sugerindo mesmo que a comissão fosse presidida por Jaime Gama (ou, em alternativa, por um ex-Presidente da República). Na mesma linha, ontem, João Miguel Tavares sugeriu que António Barreto deveria presidir a uma comissão independente com todos os meios de que necessitasse para apurar os factos.
António Barreto e Jaime Gama são, evidentemente, bons nomes. Ambos presidiram à Fundação Francisco Manuel dos Santos (JG ainda preside), uma instituição que tem contribuído para elevar a qualidade do debate público em Portugal. Já agora, vale a pena lembrar, até hoje, a FFMS teve três presidentes, o outro foi Nuno Garoupa. Mas há mais soluções possíveis. O Provedor de Justiça tem um estatuto de independência e tem funções e obrigações perante a sociedade que são adequadas para presidir a uma comissão destas.
Se os políticos não estão à altura das circunstâncias, como visivelmente não estão, tem de ser a sociedade civil a elevar o seu nível de exigência e a criar as condições para que uma comissão verdadeiramente capaz e sem conflitos de interesses seja uma inevitabilidade. Se Portugal não se eleva perante esta tragédia, mais vale apagar a luz.