As guerras desencadeadas pela Rússia em 2022 e pelo Hamas em 2023 vieram juntar-se em rápida sucessão às inúmeras guerras que minavam o mundo há anos. As guerras que incendiaram a Ucrânia e têm vindo a alastrar no Médio Oriente comoveram as pessoas como se fossem duas aberrações criadas inesperadamente por homens mal educados. Indignaram-see só agora começam a ter medo. Realmente, o mundo dessa distraída gente já era há muito um mundo em guerra.

Em Mianmar, um ano de guerra civil tinha levado à morte de mais de 10 000 crianças e milhões de refugiados. A Guerra do Quivu, com forte componente étnica e de primitivismo, assegura desde há anos uma matança regular onde a barbárie, a violência sexual e as crianças- soldados são especialmente chocantes. No Sudão, a guerra permanente, a secessão do Sudão do Sul, a miséria estrutural, os genocídios perpetrados pela maioria muçulmana, originaram um número de vítimas incontável – literalmente incontável porque o aviltamento do ambiente físico e social nem isso permite. A Guerra Civil Etíope prolonga décadas de conflitos tribais pontuados de razias e escravização, disputas territoriais, mortes e pilhagens com lógicas incidentais e de difícil compreensão. A Somália acrescenta todos os anos milhares às centenas de milhares de mortos pela fome e por conflitos armados numa terra devastada por etnias e senhores da guerra, pirataria, interferência etíope e ajuda internacional mal sucedida. A Colômbia vive há dezenas de anos uma guerra que cruza partidos políticos legalizados com grupos paramilitares, guerrilheiros de diferentes quadrantes e traficantes de droga, uma guerra cega que já provocou dezenas de milhares de mortos e que todos os dias mata. A República Centro-Africana é um pais sequestrado, sem economia e onde qualquer deslocação comporta risco de vida. Em 2024 morreram mais de 10 mil migrantes na tentativa de alcançar a Europa, também eles vítimas diferidas da guerra. Muitos outros conflitos pelo mundo inteiro matam de vez em quando, ou em menor quantidade – no Iémen, na Nigéria, na Venezuela, em Moçambique… – só se tornam notados quando há eleições e os seus resultados não são entendidos por ninguém.

Todos estes conflitos são devastadores, de enorme crueldade, sacrificam milhares de homens que algumas vezes são inteligentes e sem culpa mas, na maior parte dos casos, são vítimas ostensivas da incultura e de convicções destrutivas. No entanto, são homens, e puderam escolher. Insuportável são os milhões de crianças de uma inocência total que morrem decapitados, estilhaçados, comidos pela doença e pela fome – e que não escolheram, não viveram e não voltarão a ter outra oportunidade de viver. Todas elas entram na rotina das ONGs, são citadas em conferências internacionais e aceites como fenómenos locais – como se as pessoas fossem os tsunamis e os terramotos delas próprias, inevitáveis e naturais.

As guerras na Ucrânia e no Médio Oriente trouxeram algo de novo. Após dois anos as pessoas falam da guerra com um medo tranquilo e sem se horrorizarem demasiado. Evoluiram cognitivamente até à convicção tímida de que ali também há uma grande falta de juízo e de boa-vontade e que os contendores já não serão movidos por razões mas por assanhamento. A guerra tornou-se um motivo quase tranquilo de conversa. A dessensibilização operada nas pessoas pela visão dos cenários de batalha foi enorme. A guerra de atrito mata poucos de cada vez, vai acontecendo, uns dias melhores que outros. Sempre que um homem e a sua filha morrem na sala de jantar atingidos por um fragmento de míssil é aborrecido, mas todos sentem um sereno alívio porque não foi a família inteira e muito menos o quarteirão. Os soldados propriamente ditos morrem mais, mas sabiam ao que iam, e são tantos e tão iguais que parecem peças sem mãe, sem filhos, destituídos de vida desde o primeiro dia emque vestiram uma farda. As culpas alargam-se na mente das pessoas a grandes blocos agregadores – já não são os pequenos povos que estão em causa e a quem compete a pequena tarefa de morrerem, mas sim as grandes potências do pensamento político ou da convicção religiosa.

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Sobre uma terceira guerra mundial o juízo é mais prudente. O risco é reconhecido mas deixou de ter o revestimento dramático que tinha quando não havia perigo de que viesse a acontecer. A opinião pública e publicada já incorporaram a perpectiva de um confronto generalizado com recurso aos arsenais nucleares, supersónicos e mega-qualquer coisa, mas com sensatez, pausadamente e como uma de duas coisas: uma impossibilidade, porque prevalecerá sempre o bom-senso, ou uma inevitabilidade, mas, neste caso, uma inevitabilidade que não há-de ser tão longa, tão mortífera ou tão perto.

O fenómeno da guerra é sempre de dimensão global em potência. Tem uma natureza vulcânica e o seu comportamento depende de como se comporta o poderoso magma de ideias e avidez que se agita subjacente. Progride a partir de múltiplas pequenas crateras de descompressão até uma grande resolução explosiva – quando se tornam insuficientes ou confluem todas as fumarolas – uma explosão que as resolve com uma brutalidade incontrolável e deixa a vasta terra preparada para um recomeço. O campo das guerras pode estar a atingir o seu penúltimo estádio, aquele em que todas se procuram identificar segundo causas maiores e ameçam fundir-se numa guerra única. É um momento da história que se repete, quando a disputa por terras se converte numa luta pela hegemonia cultural. É uma tragédia imensa quando isso acontece. Nesses momentos fica perdida toda a aritmética de ganhos e perdas, os povos tornam-se solidários com os seus governos, as nações são obscurecidas pelos estados e a humanidade separa-se em exércitos.

A queda de Bashar al-Assad foi motivo de arrebatamento para muitos políticos e para os seus jornalistas privados no mundo ocidental. O homem praticara todos os assassínios e torturas que se permitiu e que a sua corte de torcionários refinou ao longo de 20 anos. Tal como fizera seu pai, concedeu às suas polícias mão livre e amnistia. A aliança com a Rússia e os interesses russos na região permitiram-lhe aceder a meios e a cobertura – na altura em que saiu de cena Bashar al-Assad deixou um rasto de meio milhão de mortos e uma infinita quantidade de sofrimento.

É muito desconfortável para qualquer governo que se apresenta como decente saber da existência de um ditador sanguinário, conhecer pelo nome os locais onde guarda os seus adversários para os torturar, ter uma ideia aproximada do número de mortos nas cadeias e nas ruas. Mas existem razões de conveniência geoestratégica e económica que dificultam a denúncia das atrocidades e os países, assim como a ONU, não usam mais do que censurar alguns exageros e recomendar moderação de parte a parte – aos governos e àqueles que vão morrer às mãos dos governos. Um levantamento dito popular é sempre uma coisa que as boas consciências saúdam. Este, na Síria, foi especialmente aliviador.

Para as consciências ocidentais, públicas e privadas, é mais conveniente que a enorme mortandade pendente sobre a Síria – cristãos, curdos e os próprios alauítas xiitas arriscam sofrer o maior número de vítimas – possa ser atribuída a lutas entre grupos mais ou menos amorfos e disfarçados de povo. Sempre que várias milícias, bandos e exércitos, espalham o caos num país e o destroem, passa a ser possível invocar a luta pela democracia, mesmo que nenhum saiba o que isso é, e desculpabilizar. E a democracia, esse modo de governo que o hábito de não pensar confunde com a liberdade, é para os cínicos e os ingénuos a última e a mais pura gota destilada no alambique dos sistemas políticos. Não é, infelizmente. É apenas o último sistema de governação criado pela oportunidade histórica – e a oportunidade na história é apenas um momento que pode antecipar a necessidade. A democracia não é o último e definitivo estádio na evolução dos sistemas de governo. Ignorar isso, defender e querer levar a boa-nova da democracia aos 4 cantos do mundo com o mesmo fanatismo dos missionários católicos, já provou ser uma mania desastrosa.

A democracia é um modo de governo que se aperfeiçoou primeiro e degenerou depois nas sociedades ocidentais. Foi um magnífico instrumento de distribuição da liberdade. Mas não é a liberdade. Hoje, nas sociedades ocidentais estupidificadas e manipuladas, a liberdade sofre os mesmos maus-tratos que Platão reconhecia sob a “democracia” ateniense. As maiorias que governam a generalidade dos países por interposto governo resultam de uma trituração demagógica de cidadãos hipo-críticos e dependentes do estado. E se, por enquanto, os países ocidentais onde ainda sobrevivem ilhas de lucidez podem ter esperança de alguma epifania, em países como a Síria isso não acontecerá. Deviam sabê-lo todos os que se congratulam justamente com a queda de Bashar al-Assad e, precipitadamente, também coma emergência de um novo poder. Deviam tê-lo aprendido com a história cada vez mais omitida das primaveras árabes. Ou, recuando mais e para outras culturas, com a história dos últimos 100anos em África (não 100 dias, como se concede a título de estado de graça aos governos recém empossados na Europa), os conturbados 100 anos que assistiram ao abandono progressivo por parte do poder colonial e à libertação dos povos. Tal como aconteceu comas primaveras árabes o entusiasmo é grande e o fetiche democrático vai tolerar as piores atrocidades na Síria. Também esta tragédia marcou 2024. Podia acontecer de duas maneiras, com Bashar al-Assad ou sem ele. Vai acontecer sem ele. A maior diferença é que assim vai merecer a compreensão e aplauso dos países ditos decentes.

Outro notável episódio da história de 2024 foi o levantamento de cidadania protagonizado pela carta aberta de 21 “personalidades” sobre a integridade ameaçada da constituição. Ou, mais miudamente, sobre a estratégia policial para entrar numa área de tensão social onde abundam traficantes, armas, manipuladores de facas, gangs organizados, desconhecedores da língua portuguesa e um ambiente convictamente dubitativo da necessidade de leis. Já pertence à história essa redacção, um ajuste de contas implacável entre o respeito pela lei e a arbitrariedade. Desse documento arrasador restarão para sempre o descrédito e o deslustre sobre uma das partes – a história dirá qual delas, embora as pessoas mais lúcidas já saibam qual vai ser. Ficará resguardado na gaveta onde se encontram ternamente deitadas a “Declaração do Porto”, a petição pública “Devolvam a Torre da Igreja às Cegonhas de Aldeia da Ponte” e todas as cartas escritas ao Pai Natal neste ano de 2024.

A assinatura das 21 personalidades estará a ser acrescentada a partir de um texto “muito plural”que já conta com Isabel Moreira, Joana Mortágua, José Soeiro, Ana Mendes Godinho e que, espera-se sem ansiedade, serão em breve acompanhados pelos restantes nomes que fazem parte do kit anti fascista e anti racista. Esta iniciativa, que agora a Lusa noticia, já tem por suporte pedaços de pensamento imaculados. Os promotores do protesto preocupam-se porque uma operação policial preventiva ocorra “numa área da cidade predominantemente frequentada por comunidades imigrantes, levantando dúvidas sérias sobre a equidade no tratamento de cidadãos… Estas acções dificilmente teriam lugar em outras áreas da cidade…”. Ignora o texto, mas certamente não ignora o seu autor, que não são apenas os imigrantes que predominam naquela área da cidade. Predominam ali outras realidades e terão sido estas, e não os imigrantes, que a polícia tinha em mente. Mas fica a reflexão dos promotores da carta aberta e uma chamada de atenção às autoridades – por uma questão de equidade, uma rusga igual deverá ser feita nos gabinetes das sedes partidárias e à saída da missa na Basílica da Estrela, e do mesmo modo se recomenda que a investigação do roubo de catalizadores não se limite preconceituosamente aos sítios do costume mas possa ser alargada aos infantários doRestelo e às lojas de moda feminina nas avenidas novas.

Ainda é incerto o número de assinaturas que a carta aberta das 21 personalidades virá a ter na sua versão melhorada. Os 21 serão inultrapassáveis em carisma.

O fascínio dos números é grande e a vida pública em Portugal teve com eles as suas alturas de embevecimento. Mota Amaral não resistiu ao encanto do 69 e salientou-o na Assembleia da República; o 25, um número que já era ocupado pelo Natal e pelo quarteirão, tem sido usado sem descanso para pronunciamentos militares e eleições. Não tiveram sorte as 21 “personalidades”, porque o número 21 encontra-se há muito ocupado pela sabedoria popular – a sabedoria que agora pode ser evocada muito a-propósito pela voz de todas as raparigas: 7e 7 são 14, com mais 7, 21, tenho sete namorados e não gosto de nenhum.

(Rapariga é uma bela palavra portuguesa, tal como bicha ou puto… e todas devem ser preservadas, para que da submissão acéfala aos modismos do Brasil não se venham a ver ainda mais as cuecas, que no Brasil são designadas por calcinhas, de Portugal)

A imprensa carimbou com 21 esse documento que menciona “paradigma”, “recato”, que se propagou para explosões de claridade em que se reconhecia a violência sobre “a alma de uma nação inteira”, se peregrinou com fetiches e compunção e se fez prova de multiculturalidade – ou seja, uma convivência harmoniosa entre quem tem alguma cultura e uma folgada turba que não tem nenhuma. Mas os 21 não estão sós nesse píncaro de contagem. Estão muito aquém dos 10 000 que segundo Xenofonte o acompanharam no atribulado regresso à Grécia, perseguido por persas depois de os ter desafiado. Mas não desmerecem diante de outros números míticos. Por todo o mundo que resta, depois de a maior parte dele ter sido ocupado pela grandeza de Portugal, são conhecidos números de significado único.

Ninguém ignora e esquecerá os 12 indomáveis patifes, que vieram a morrer quase todos, uns por heroísmo e outros por parvoíce; os 40 ladrões de Ali Babá, simpáticos e nunca incomodados pela PSP; os 101 dálmatas, todos iguaizinhos e ladrando com grande afinação; os 5 e as suas aventuras no mundo dos adultos; as 50 sombras de Grey, uma coisa sado- masoquista que não deve ser confundida com os 50 do Manifesto pela Justiça – 50 personalidades extraídas do kit antifascista e de defesa da constituição, depois acrescentadas por outras 50 e mais 50, que merecem consideração e às quais não deve ser imputada qualquer motivação sádica; as 30 moedas pelas quais Judas vendeu o Mestre, bastante no seu tempo mas muito menos do que uma pequena atenção autárquica.

Os números servem para fixar no imaginário popular momentos imperdíveis da vida. Os 21 já têm o seu lugar, indisputável.

Em 11 de Dezembro uma mulher de 92 anos e um homem de 63, mãe e filho, foram encontrados mortos em sua casa sita numa rua de Lisboa. Não foi isso em 11 de Dezembro de 220, no mesmo dia em que o imperador Xiandi da China foi forçado a abdicar do trono a favor do seu filho Cao Cao, terminando a dinastia Han; nem em 11 de Dezembro de 361 quando Flávio Cláudio Juliano entrou em Constantinopla como único imperador do Império Romano; não ocorreu tal em nenhum desses ou em qualquer outro ano distante e anterior à criação do mundo. Foi em 2024, no mesmo ano em que Portugal alcançou a organização do campeonato do mundo de futebol de 2030 e o cantor Marco Paulo morreu rodeado de cuidados e atenção.

Os vizinhos terão estranhado alguma coisa – deixaram de os ver, talvez o filho saísse todos os dias para ir comprar pão e nunca mais foi visto, deixaram de ouvir a sua tosse e os chamamentos da senhora, talvez estranhassem o terrível cheiro à morte por enterrar. Bateram à porta e nenhum deles veio abrir. Quando a polícia chegou e forçou a entrada foi possível a dissipação das dúvidas e da preocupação. Com sorte, alguém terá notado que à frágil vida de mãe e filho não foi concedida a dignidade da morte – foram obrigados a passar imediatamente para o estado de decomposição.

A sua rua não fica muito longe do Hospital Curry Cabral e da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. O homem, estranhamente filho quando a sua idade lhe permitiria ser avô, já estaria morto há mais de três semanas. A mulher, a sua mãe, estava morta caída no chão com uma fractura na perna. Supõe-se que a senhora teria morrido uma semana antes, supondo-se ainda mais que durante 15 dias terá tentado ressuscitar o seu filho, ao menos conseguir aninhá-lo no seu colo como Nossa Senhora acolheu o filho morto.

Segundo a Polícia de Segurança Pública não havia indícios de crime. Enganou-se a polícia. Aqueles dois seres infelizes, que eram mãe e filho e por isso imensamente mais infelizes na hora da morte, foram mortos por todos os que não lhes acudiram ou, simplesmente, não sabiam que eles existiam. Aquela família podia ter sido considerada monoparental, talvez com esse nome tivesse beneficiado de mais atenção por parte dos activistas que dilucidamos vários tipos de arranjo familiar e enaltecem as suas qualidades. Essa, porém, foi uma família sem qualidades e sofreu a morte desamparada dos que não servem para nada.

Segundo o costume os cadáveres foram encaminhados para o Instituto de Medicina Legal. Devem ter sido fotografados, bocados críticos dos seus corpos pesados e medidos, os seus tecidos foram sujeitos a reagentes de implacável lucidez. Depois disso, quando todos os resultados forem conhecidos, voltarão a não ser encontrados indícios de crime.

É este o mundo à saída de 2024.