Entre as surpreendentes, embaraçosas e deslocadíssimas declarações de Marcelo Rebelo de Sousa no contexto de um jantar com jornalistas estrangeiros, sobressaem, do meu ponto de vista, o compromisso de assumir “total responsabilidade” pelos “crimes”, coloniais cometidos e o de “pagar os custos” a eles inerentes, compromissos políticos que já tive ocasião de criticar. Mas alguns dias volvidos, o PR decidiu clarificar essas suas declarações e, ao fazê-lo, tornou-as ainda mais graves e surpreendentes. Efectivamente, durante a inauguração do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, em Peniche, no passado sábado, Marcelo declarou que Portugal tem a “obrigação” de “liderar” o processo de reparação às ex-colónias, sob pena de perder “capacidade de diálogo” com as mesmas. Disse, entre outras coisas, que o nosso país tem a “obrigação de pilotar, de liderar, este processo”. Ou seja, Marcelo, que nesta questão dos pedidos de desculpa e de reparações já estava a pôr o carro à frente dos bois e a sangrar-se em saúde, parece estar agora em clara fuga para a frente e fala dessas reparações como se elas fossem um facto consumado, o que é extremamente grave.
Há dias Miguel Sousa Tavares considerou Marcelo Rebelo de Sousa um incontinente verbal fora de auto-controlo. Eu não discordo dessa caracterização, mas há uma outra que me parece mais ilustrativa da situação que estamos a viver e mais compatível com aquilo que nos chega do Palácio de Belém. De facto, os ingleses têm uma expressão que usam com frequência na discussão e na crítica política e que se adequa a este caso. Quando querem dizer que alguém é imprevisível e um perigo para os seus próprios amigos e aliados usam a expressão “a loose cannon”, isto é, um canhão solto. É uma imagem excelente. Imaginem, num campo de batalha ou no interior de um navio de guerra, um canhão não travado ou não amarrado que, por isso, dispara em direcções imprevistas e que, ao fazê-lo, recua, esmaga e atinge os seus próprios militares. Marcelo parece ser, neste momento, e nesta matéria, um “loose cannon”, alguém que se comporta de uma forma inesperada e susceptível de causar problemas a outras pessoas, ao governo da sua própria área política e ao país.
E perante esse comportamento eu confesso que durante uns dias me surpreendeu e inquietou o silêncio do governo. Eu percebo o embaraço de Luís Montenegro e dos ministros das pastas potencialmente comprometidas por esta aventura woke do PR, mas era imperioso que o país soubesse o que os nossos governantes pensavam e o que tencionavam fazer sobre esta matéria.
Pois bem esse silêncio terminou e o país já o sabe. Na sequência destas mais recentes declarações de Marcelo, em Peniche, o governo reagiu depressa e bem. Em nota enviada à comunicação social, veio afirmar que, nessa matéria, “se pauta pela mesma linha dos governos anteriores” e que não esteve nem está em causa nenhum processo de reparações. Lembrou, também, que Portugal “tem tido gestos e programas de cooperação de reconhecimento da verdade histórica com isenção e imparcialidade” e garantiu, e muito bem, que esses gestos e cooperação prosseguirão. Na referida nota o governo assegurou que o “aprofundamento das relações mútuas, respeito pela verdade histórica e cooperação cada vez mais intensa e estreita, assente na reconciliação de povos irmãos” é “e será sempre a sua linha”. Reparações, não.
Parabéns ao governo. Foi claro, sensato, firme e cortou este disparate a tempo. Terá cortado este mal — isto é, esta doença woke — pela raiz? Talvez não totalmente, mas pelo menos pôs muita água na fervura e, quem sabe, talvez tenha mesmo voltado a amarrar o canhão solto. É claro que o Bloco de Esquerda e o Livre já vieram anunciar iniciativas tendentes a prosseguir a agitação em torno dessas questões, mas isso não é novidade, é apenas o que têm vindo a fazer, com pouco sucesso, desde 2017. Aliás, nenhum desses partidos é um “loose cannon”, nem quanto ao calibre nem quanto à imprevisibilidade. São apenas armas ligeiras que disparam sempre na mesma direcção, uma direcção estereotipada que, acrescente-se, Portugal conhece bem.
O que ainda não conhecia era a posição do governo da AD. Ficou agora a conhecê-la e, espero eu, a apoiá-la.