É compreensível que o prolongamento indefinido da chamada «grande recessão» iniciada em 2007 tenha desencadeado nos países mais atingidos pelo regime de austeridade financeira, concretamente nas sociedades do Sul da União Europeia, o aparecimento de novas organizações partidárias que se propõem lutar contra tudo e contra todos a fim de pôr fim imediato à crise. Habitualmente, são parcas quanto à maneira de conseguir esse milagre e especializam-se, sobretudo, na desestabilização dos já de si tremidos equilíbrios dos respectivos sistemas partidários, sem nada contribuir para resolver o problema que as fez nascer.
A primeira dessas organizações foi o Syriza na Grécia, onde a crise é mais profunda e se prolonga há mais tempo, estando o país ainda sob tutela dos credores. Por ora, o Syriza continua na oposição e a sua principal tarefa tem sido tornar a vida ainda mais difícil ao governo de coligação entre as duas antigas oligarquias dominantes, a «nova democracia» do primeiro-ministro Samaras e o PASOK (socialista). Veremos o que trazem as próximas eleições. Já na Itália, o processo de desintegração partidária vai mais adiantado. Os antigos comunistas, depois de múltiplas metamorfoses, transformaram-se há pouco no partido de um líder, Matteo Renzi, que prometeu mundos e fundos mas continua a tentar cumprir as exigências da UE sem grande êxito e nenhum crescimento económico.
A Itália é, com Portugal, o país do mundo que menos cresceu na última década e meia. A falta de desenvolvimento não é de agora. Simultaneamente, entrou agora para a coligação governamental italiana o terceiro partido mais votado das últimas eleições, um tal «movimento das cinco estrelas» do comediante Beppe Grillo. É o regresso, depois de Berlusconi, à antiga tradição política italiana qualunquista, da qual este «movimento» cem por cento populista e politicamente irresponsável é a última incarnação. Vamos ver quanto tempo dura e quanto mais mal fará à recuperação da Itália. Quem sabe se não chegaria ao poder no dia em que a Itália saísse do «euro»?
Entretanto, em Espanha, apesar da vitória do partido do governo (PP) nas recentes eleições europeias, o sistema partidário continua a tremer, independentemente da explosão da corrupção e da ameaça catalã à integridade do Estado espanhol, com o regime das «primárias» no PSOE e o advento de mais um jovem líder de cujo passado pouco ou nada se sabe e muito menos do futuro, Pedro Sánchez… Como se isso não bastasse, o desequilíbrio crescente do sistema partidário prosseguiu com a aparição de mais um jovem agrupamento populista que pretende situar-se entre a «direita» e a «esquerda» parlamentar. Trata-se do imediatamente famoso «Podemos» (nome imitado do slogan do periclitante Obama, que nada conseguiu do que pretendia!), o qual até já tem imitadores em Portugal, como a antiga «candidata a candidata» presidencial Manuela Magno, com uma «assembleia cidadã» marcada para Dezembro… Levado em ombros pelos media, o «Podemos» aspira a ganhar as próximas eleições. Ao pé de todos estes «vendedores de promessas», Marinho Pinto faz fraca figura!
Há, porém, mais quem se inspire neste duvidoso modelo espanhol. Com efeito, Boaventura Sousa Santos (BSS) acaba de escrever («Visão», 13 do corrente) que «o novo partido ‘Podemos’ é a maior inovação política na Europa». E diz uma coisa mais intrigante: «Ao contrário do Syriza e do BE, não são visíveis nele traços da Guerra Fria». Não são visíveis? Eu vejo traços da antiga e sobretudo da nova guerra fria, hoje conduzida menos entre Ocidente e Oriente, e mais entre o Norte e o Sul (considerando que a Rússia e a China fazem parte deste «sul», como veremos)…
BSS tem uma teoria já antiga a respeito do que ele designa por «epistemologias do Sul», das quais o «Podemos» seria a última emanação, numa linha que não imaginaríamos à primeira vista e que vai do «Foro Social Mundial» e dos «governos progressistas» da América Latina até à ainda mais duvidosa «Primavera árabe»… Receio que o próprio «Podemos» ignore estas suas remotas origens, mas o que interessa agora são as ideias do autor. Primeiro faz uma observação noção curiosa: «Ser de esquerda é um ponto de chegada e não um ponto de partida» (esta é para António Costa e o PS, presume-se).
E a seguir põe as cartas na mesa: «Quem na Europa é a favor da Parceria Transatlântica para o Investimento e o Comércio não é de esquerda, mesmo que militante de um partido de esquerda». Então, afinal, «ser de esquerda» tem mesmo tudo a ver com a nova guerra fria, como aliás BSS havia claramente dado a entender a propósito da recente eleição presidencial brasileira, onde apoiava o alinhamento internacional do Brasil pela China, Rússia e Índia, bem como a criação do novo «banco mundial» dos emergentes… Assim se vê que «ser de esquerda», para ele, é ser contra os USA e separar a Europa – se não toda, pelo menos a do Sul – do inimigo do Norte! Ficamos cientes do que seria, para um teórico da pretensa «democracia participativa», a «onda ‘Podemos’» se chegasse a Portugal.