No pico da campanha eleitoral para o Parlamento Europeu, Sebastião Bugalho, candidato pelo PSD, espera que Paupério seja eleito para que juntos possam pôr a habitação na Carta dos Direitos da União Europeia. E aproveitou um debate aqui, no Observador, para informar o país sobre esta sua política de alianças, ignoramos se autorizado ou instruído pelo chefe. Não costumamos encontrar uma tal bateria de erros numa frase tão curta: a cumplicidade com Paupério, candidato do Livre, assim oficializada pelo PSD; o estabelecimento da habitação como um “direito”, obviamente garantido pelo Estado e “tendencialmente gratuito”, para juntar à saúde, à educação, e à segurança social, que acumulam escândalos de ineficácia e carência; a “normalização” da extrema-esquerda. Merecia que os eleitores lhe fizessem a vontade e dessem a Paupério os votos que Bugalho pediu, em lugar de lhos darem a ele.
No dia seguinte, a candidatura de Cotrim estreou um mau pedaço de cinema. O plano de abertura mostrava a vedeta sentada com um grande calhamaço ao colo. Percebia-se que era O Capital, de Karl Marx, na versão original em alemão. Cotrim lia aplicadamente. A dada altura, impacientava-se e resumia aquilo: “Este gajo continua a não fazer sentido nenhum”, a acreditar nas legendas, já que a exegese era desabafada em alemão. Cotrim lidera a candidatura de um partido dito (e chamado) “liberal”. Exibe-se a ler Marx, a bíblia do comunismo, talvez para se fazer “arejado” e “democrático”, afligido pela necessidade da “direita educada” suplicar à esquerda carimbos de bom comportamento.
Quão aberrante seria ver um candidato aparecer em campanha a ler Mein Kampf, de Adolf Hitler? É com ele que compara O Capital, de Karl Marx, em termos de miséria humana produzida. E que dizer se o candidato no fim comentasse “este gajo continua a não fazer sentido nenhum”, assim mesmo, mostrando esta familiaridade com “o gajo”, e como se “não fazer sentido nenhum” fosse o crime histórico daquele livro? O comunismo é tratado em Portugal com bonomia, com uma proximidade desculpabilizante. Hoje sabemos que fez milhões de mortos, continua a fazer mortos e sociedades miseráveis. Recomendo o documentário Beyond Utopia, sobre a maneira como se vive e se foge da Coreia do Norte, e os riscos que aqueles desgraçados correm ao atravessar todos os países comunistas, que os matam ou devolvem ao país de origem se lhes conseguem deitar as mãos antes de eles chegarem a um país decente. E sobre a maneira como as famílias são separadas, e como um filho com dezassete anos paga com a vida a fuga da mãe, que antes desta notícia recebe descrições gráficas das sovas na cabeça que o filho leva da polícia.
Não, o problema de O Capital não está em “não fazer sentido nenhum”. O problema é o sentido que ele faz. Estes dois livros, tanto O Capital como Mein Kampf, forneceram enquadramento intelectual e suporte teórico para os seres humanos descerem ao ponto mais baixo das sociedades e da espécie. Cotrim, interessado em mostrar que sabe falar alemão, não entende O Capital nem o peso dele na justificação dos regimes comunistas. Só assim se explica o comentário “este gajo” não faz “sentido nenhum”. Cotrim devia comentar: “Este livro, ou esta teoria, logo de raiz é uma abominação e só podia produzir os regimes abomináveis que produziu”. Mas de uma vedeta de cinema não se espera tanto.
O Portugal político e mediático que relativiza Cotrim, relativiza Bugalho, e relativiza o comunismo, é igualmente irresponsável e analfabeto. Com Hitler ninguém faz confusões, toda a gente lhe atribui o peso justo na história das misérias humanas. Mas desculpa-se o marxismo e o comunismo, que não estão enterrados no passado. Pelo contrário, têm herdeiros vivos, promovidos em Portugal, herdeiros que se reconhecem como herdeiros, orgulhosos daquela linhagem abjecta, e prontinhos a reproduzir as mesmas glórias. E na “direita educada”, aquela que não é simplória nem primitiva, a direita da “moderação”, a direita “das pessoas e para as pessoas”, vemos Bugalho em campanha a pedir votos no candidato do Livre, e vemos Cotrim a ler O Capital, de Karl Marx. Quando é que teremos à direita políticos, em vez de amadores? A responsabilidade por sermos décadas a fio governados pelo PS e pela extrema-esquerda não é só da habilidade do PS. É também do amadorismo da direita.