As pessoas negativas já não são as religiosas mas as não-religiosas. As pessoas não-religiosas hoje desfilam publicamente as suas proibições, vão elas da comida que não se deve comer (um miúdo já não pode engordar na cantina da escola), até ao tratamento dos animais (já não podem existir gatos em casa sem chip), passando pelos rígidos mapas para o sexo (o cidadão tem de se limitar a copular de acordo com os seus sentimentos). Quanto menos Deus há na nossa vida, mais impedimentos impomos aos outros.

Quem cresceu na Igreja sabe o que é não fazer o que a maioria faz. Por exemplo: não ver os desenhos animados ao Domingo de manhã por estar no culto, não dizer palavrões, não consumir pornografia, escolher bem a influências, evitar a imoralidade, enfim. Os religiosos costumavam ter uma vida que, em grande parte, era baseada em dizer não ao que facilmente as pessoas dizem sim. Nesse sentido, as pessoas negativas eram as da religião e as positivas todas as outras. Mas os papéis têm vindo a inverter-se.

À medida que o tempo passa e a religião perde importância, as pessoas negativas tornam-se as que não a têm. É uma espécie de paradoxo. Como não conseguimos deixar de ser gente que adora alguma coisa, quando as adorações saem oficialmente da Igreja para poderem ser qualquer coisa fora dela, instituem-se os cultos mais vigorosos que, talvez por serem inconscientes, parecem ser os das pessoas não-religiosas. Nós vivemos hoje numa época assim. Perdemos religião e isso encaminha-nos a impôr mais ferozmente o modo oficioso de ela sobreviver (repararam, por exemplo, como neste Natal marcas de telemóveis os venderam através de sermões contra os maus tratos domésticos?).

Faz-me lembrar a minha adolescência na Igreja. E a música que não devia ouvir, por supostamente ser satânica (só no final dos meus vintes é que ouvi os Iron Maiden). Hoje os miúdos sem religião vivem como os miúdos religiosos de há décadas, com códigos apertados do que podem e não podem fazer. E é surpreendente a mudança. Antigamente, quando as pessoas negativas eram as religiosas, um choque era o que podia acontecer quando se lidava com algo errado. Hoje, que as pessoas negativas são as não-religiosas, tão somente poder haver algo errado é um choque. Se no passado o santo tinha medo do profano, no presente o profano toma o santo como blasfemo (sei o que é a FlorCaveira, a minha família musical, ser evitada por alguns descrentes da mesma maneira que nós, os adolescentes evangélicos, fazíamos com o heavy metal há trinta anos).

Agora topem o lado solar de tudo isto: subitamente, as antigas pessoas negativas podem dar sins ao que um número crescente diz não. Podemos engordar? Sim! Podemos arranjar gatos sem chip? Sim! Podemos copular além dos nossos instintos? Sim! O pior que pode acontecer é, dependendo do novo vigor negativo das pessoas não-religiosas, acabar na prisão. Ainda não chegámos lá e esperança tenho que lá não cheguemos, mas nunca se sabe.

Tenho a verdadeira religião como a arte de desistir do que nunca conseguiremos ser. À medida que confio em Deus, vou desistindo de todos os meus instintos naturais de querer sê-lo. Por isso, sei que ter fé não se baseia naquilo que faço ou deixo de fazer. Sei que a fé se vê também naquilo que faço ou deixo de fazer, claro. Mas hoje é certo para mim que quem mais vive em função da pureza do que faz (ou deixa de fazer) é quem acaba a impôr-se como Deus dos outros. Dessa religião tenho vindo a libertar-me, espero.

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