O fintech, simplistamente definido como tecnologia financeira, está a desempenhar um papel essencial na transformação da banca a nível global. Portugal tem boas startups a trabalhar no tema, mas os bancos, o governo e os reguladores ainda não estão suficientemente organizados para aproveitarem esta mudança da melhor forma. A tecnologia pode contribuir para a inflexão dos consistentes resultados negativos do sector bancário, facto que tem servido de inibidor de toda a economia nacional.
Deixo três temas para reflexão de todos os participantes na indústria financeira, na esperança que Portugal como um todo tenha uma estratégia definida para aproveitar as oportunidades de amanhã que serão usufruídas pelos que estão prontos hoje.
1. A tecnologia disruptiva chegou e não há marcha-atrás
Neste ponto é importante sublinhar dois fatores principais a obrigar a chegada da tecnologia ao sector: as exigências dos utilizadores (o mercado) e o regulador (o Banco Central Europeu).
Como clientes, todos queremos, consciente ou inconscientemente, as formas mais práticas de utilizar um serviço. Se há umas décadas ir ao multibanco era sinónimo de enorme conforto, para a minha geração é um pesadelo ter de sair do lugar para tratar seja do que for. Quando o mercado é livre e de fácil mudança entre concorrentes, é natural que os clientes flutuem de fornecedor em fornecedor até chegarem ao que melhor se adapta às suas necessidades. Infelizmente, no sector bancário é trabalhoso abrir ou fechar uma conta e, escudado pela inércia do cliente, o sector tem evoluído muito lentamente.
Em Portugal lamenta-se a imensidão de legislação e regulamentação que está a sair do BCE, mas nunca ouvi ninguém referir que isto vai também permitir que bancos de um país pequeno possam operar de forma muito mais livre no espaço europeu. Podia ir buscar vários exemplos de regulação, mas trago duas oportunidades em específico que me parecem muito interessantes.
A primeira é o PSD2 (Payment Service Directive) que obrigará todos os bancos a ter Open API (protocolos abertos de troca de informação). Esta obrigação, além de provocar muitas quebras de monopólios de pagamentos a nível europeu, poderia servir de mote para os bancos abrirem a sua infraestrutura de forma a co-criarem com quem quer desenvolver serviços financeiros em cima da sua infraestrutura. A nível global, quem aproveita estas funcionalidades são na sua maioria startups e em Portugal seria essencial termos esta possibilidade para criar um ecossistema fértil para o desenvolvimento do sector.
O passaporte bancário é o segundo tópico que assinalo. O facto de se poder fornecer serviços bancários em países da União Europeia mantendo as contas, os sistemas e a regulação é um passo crucial para países pequenos como Portugal poderem colocar a nível europeu o que já desenvolveram internamente.
Para ilustrar o que digo e servir de inspiração, deixo o exemplo do N26. Este banco alemão que está apenas focado na experiência de utilizador e que permite aos seus clientes abrir contas com uma chamada de vídeo em oito minutos, tem uma Open API para a colocação de produtos desenvolvidos por terceiros e está a utilizar o passaporte bancário para começar a captar contas em toda a Europa. É uma evolução impressionante para uma startup com dois anos, sem produtos próprios e sem grande know how bancário da parte dos seus fundadores.
2. Os incumbentes devem mudar a forma como olham para as startups
Há três formas de trabalhar com startups de fintech e todas elas devem ser implementadas em paralelo para realmente se aproveitar o seu potencial disruptivo.
Integrar – Não se justifica que cada entidade desenvolva a sua solução para muitos dos progressos que ocorrem no mercado. Um exemplo é a LOQR, startup portuguesa que desenvolveu um catálogo dos mais recentes métodos de autentificação. Será viável um banco otimizar métodos como face recognition ou finger print para todos os telefones do mercado? O mais provável será os seus departamentos de IT não terem orçamento para isso.
Co-criar – Os Non Performing Loans são como um vírus no sistema financeiro português. Não faria sentido os risk officers utilizarem sistemas de inteligência artificial para os ajudar a baixar estes rácios? James é um software da CrowdProcess, startup portuguesa que já o faz. Porque não trabalhar com eles para melhorar os rácios dos bancos que têm sido um travão tão grande para a economia portuguesa?
Investir – Investir em startups não é um trabalho fácil e, muitas vezes, dadas as restrições de capital, os bancos nem podem ter estes ativos em balanço. Mas podem investir em projectos conjuntos ou joint ventures. Veja-se o trabalho que o Santander (Reino Unido) está a desenvolver com a Kabbage, startup norte-americana, para dar crédito com mais informação a PME.
3. Precisamos de um Governo e de um regulador mais esclarecidos e a implementar medidas concretas
Tanto o governo como o Banco de Portugal já identificaram a necessidade e têm participado em conferências e entrevistas referindo que estão preocupados com o tema. Mas o que podem fazer concretamente?
Para o regulador a reflexão que deixo é a necessidade imperativa de se criar uma regulatory sandbox ou um innovation hub. Este tipo de figuras são essenciais para que quem está a inovar – sejam startups ou os próprios incumbentes a tentar reinventar-se – tenha um processo estabelecido com o regulador de forma a que as suas inovações possam receber feedback da supervisão regulatória e ter um carimbo de qualidade que descansa os utilizadores. Os reguladores podem ainda usufruir desta metodologia para colocar em marcha alterações exigidas pelo Banco Central Europeu. Países como Inglaterra, Singapura ou Alemanha já o estão a fazer muito bem. Isto seria uma forma muito interessante de evitar a atual arbitragem regulatória que o sector financeiro português vive quando se entra em competição com países com reguladores dotados destas instituições (exemplo da abertura de contas à distância).
Para realmente aproveitar esta vaga, Portugal deve definir estrategicamente como e onde quer ser o melhor nesta Europa sem fronteiras bancárias. Pequenos países como a Lituânia estão a fazer um trabalho notório e o banco central local decidiu ser o melhor hub europeu para basear empresas de pagamentos. O Governo português poderia ter um papel crucial na coordenação de todos estes intervenientes e criar uma infraestrutura estável para empresas, startups e incumbentes desenvolverem estes avanços.
Talvez a responsabilidade mais urgente, que está a ser ignorada, seja a de se criarem condições para Portugal usufruir do cada vez mais próximo Brexit. Uma das maiores indústrias inglesas é a financeira e, com a saída da União Europeia, arrisca-se a perder a figura do passaporte para instituições financeiras. Não seria interessante ter uma oferta completa para receber as empresas de fintech que precisam deste passaporte? Poderíamos sonhar em sermos nós a receber as empresas norte-americanas que querem conquistar o mercado europeu? Vender o sol e engenheiros com salários mais baratos pode funcionar em alguns sectores do empreendedorismo, mas no espaço do fintech exige-se uma resposta mais completa e baseada nos pilares acima descritos. Estão a investir-se alguns biliões de euros nesta indústria, geração de riqueza essencial para um país com um equilíbrio económico ainda muito precário.
Poderá o fintech salvar a banca nacional? Poderia, mas ainda há muito trabalho pela frente. Deixo o desafio aos incumbentes de delinearem caminhos claros de colaboração real com startups. Aos reguladores e Governo deixo o objetivo de definirem estratégias para não travar a inovação e escolherem onde nos queremos e podemos diferenciar, de forma a que Portugal possa ser um laboratório Europeu de inovação tecnológica financeira, servindo como estrutura base para bancos e startups cooperarem e diferenciarem-se.
João Freire de Andrade tem 28 anos e é ‘head of venture capital’ na BiG Start Ventures, fundo português de capital de risco focado em Fintech. O gosto pelo empreendedorismo foi despertado durante o meio ano que esteve em Moçambique no projecto Move Microcrédito, onde apoiou a criação de sete negócios de pessoas carenciadas. Foi fundador e presidente do BET – Bring Entrepreneurs Together, a maior organização de empreendedorismo jovem em Portugal, e da Portugal Fintech Association. Licenciou-se em Economia pela Nova School of Business and Economics em 2009 e tem um mestrado em Management and Finance da Católica Lisbon School of Business and Economics. Regressou à Nova SBE para lecionar no mestrado de Finanças. Terminou este ano o curso de Fintech do Massachusetts Institute of Technology (MIT).
Os Global Shapers estão ligados ao World Economic Forum que, além do famoso encontro em Davos, realiza um segundo encontro anual em Dalian na China. Este evento é usualmente conhecido por ‘The New Champions Annual Meeting’ e, atualmente, é um dos maiores encontros globais dedicados aos temas da ciência e inovação. Desde o passado mês de abril e ao longo dos próximos meses, os Global Shapers de Lisboa irão discutir no Observador alguns dos grandes temas do presente e do futuro. Na próxima semana, a Global Shaper Mariana Melo Egídio vai falar-vos da Constituição Portuguesa. Deixo esta questão: a nossa Constituição serve para garantir os mais elementares direitos e deveres dos Portugueses. Mas até que ponto não está a ser um travão na adaptação do país nesta Europa em constante mudança social e económica?