Pavel Durov, CEO e fundador do Telegram, foi recentemente detido em França no âmbito de uma investigação sobre alegadas atividades ilegais facilitadas pela plataforma Telegram. As autoridades francesas estão a investigar Durov por possível cumplicidade em crimes, incluindo a distribuição de pornografia infantil, tráfico de drogas, fraude e apoio ao crime organizado. Pese embora o governo francês procure enfatizar que esta detenção não é motivada politicamente, antes fazendo parte de uma investigação judicial mais ampla, é difícil ignorar que em boa medida o Telegram se tornou uma bête noire por, alegadamente, se recusar a cooperar com as autoridades no combate a crimes cibernéticos e financeiros na sua plataforma. O timing da detenção, porém, levanta ainda mais suspeitas sobre as verdadeiras motivações das ações legais contra o Telegram, já que parece cada vez mais claro que, ironicamente (importa notar que historicamente Durov sempre foi um crítico de Putin), o Telegram se terá tornado numa das ferramentas favoritas dos militares russos.

Importa perceber, sem entrar em grandes tecnicidades, porque é que o Telegram é tão apetecido em alguns nichos de utilizadores. Desde logo, o Telegram por dispor de encriptação de ponta a ponta facilita “conversas secretas” em que as mensagens só são visíveis para o remetente e o destinatário, não sendo sequer armazenadas nos servidores da empresa ou de terceiros a seu serviço. As conversas podem ser programadas para se autodestruírem após um determinado período, somando uma camada adicional de segurança. Acresce que o Telegram utiliza uma rede distribuída de centros de dados em todo o mundo, o que ajuda a entregar mensagens de forma rápida e eficiente, mesmo em áreas com baixa conectividade. Além do mais, e ao contrário de outras aplicações de mensagens concorrentes, que requerem números de telefone, o Telegram permite que se estabeleçam comunicações apenas utilizando nomes de utilizador (não necessariamente os nomes reais). Isto significa que se pode interagir com pessoas sem partilhar o seu número de telefone, aumentando a sua privacidade. Finalmente, importa referir que o Telegram, ao permitir que os utilizadores partilhem ficheiros com elevado tamanho (grandes documentos, vídeos ou outros ficheiros multimédia) sem a necessidade de recurso a soluções de armazenamento externo, e ao incluir funcionalidades como canais para a difusão de mensagens para grandes audiências e chats de grupo que podem agregar milhares de membros, tornou-se o canal privilegiado para diferentes necessidades de comunicação.

Durov alega que é apenas responsável por uma plataforma que tem um desenho pensado para dar versatilidade, segurança e privacidade aos seus utilizadores, e que não lhe podem ser assacadas responsabilidades pelos atos praticados por terceiros. Durov tem a seu favor algo que dificilmente será rebatível pelas autoridades judiciárias: a sua plataforma foi pensada para ser segura, oferecendo elevados níveis de privacidade, algo que é até enfatizado por leis europeias. E não poderá ser tida como uma rede social, já que não há qualquer incorporação de valor por parte do Telegram, ou sequer acesso aos dados gerados pelos utilizadores nos chats de grupos (o mais próximo que o Telegram terá de uma rede social).

Pela mesma altura, assistimos no Brasil à suspensão do X (ex-Twitter), fruto de uma disputa legal entre a plataforma e o sistema judiciário brasileiro, particularmente com o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. O cerne do conflito envolve alegadas falhas do X em cumprir várias ordens judiciais, como a exigência de nomear um representante legal no Brasil e de bloquear contas que alegadamente espalham desinformação, particularmente aquelas ligadas a grupos políticos de direita e apoiantes do ex-presidente Jair Bolsonaro. Elon Musk, proprietário do X, recusou-se a cumprir estas ordens, por considerar que elas equivalem a censura inconstitucional. No entanto, o ministro Alexandre de Moraes insiste que estas ações são necessárias para garantir o cumprimento da lei brasileira e proteger a democracia. Como resultado, ordenou a suspensão da X no Brasil e determinou que os provedores de serviços de internet e as lojas de aplicações bloqueiem o acesso à plataforma até que ela cumpra as diretivas do tribunal.

Estes casos têm gerado um debate significativo, particularmente sobre as responsabilidades dos proprietários de plataformas em relação ao conteúdo gerado pelos utilizadores e o equilíbrio entre a liberdade de expressão e a responsabilidade legal. Da minha parte, sou um defensor acérrimo, quer da liberdade de expressão, que do império da lei, o que significa, também que me parece importante que os Estados possam ter a prerrogativa de suspender, em situações-limite, as operações de grandes plataformas, sobretudo quando estas puserem em causa direitos fundamentais dos cidadãos.

O uso da prerrogativa da suspensão – temporária ou definitiva – deve, em qualquer caso, ser usada com parcimónia e em situações bem justificadas, onde não fique a sensação de que o sistema político está muito mais a defender os interesses particulares dos seus agentes num cenário altamente conjuntural, e não tanto direitos fundamentais dos cidadãos ou os pilares do Estado de Direito. É que, sejamos claros, crimes cibernéticos e financeiros, como distribuição de pornografia infantil, tráfico de drogas, fraude e apoio ao crime organizado, já existiam no Telegram quando a França generosamente concedeu a nacionalidade francesa a Durov, existindo em inúmeras outras plataformas semelhantes que não instigam a saga regulatória dos poderes estatais. E, não obstante personagens como Musk, Zuckerberg ou Altman nos façam lembrar, nem que seja por sátira, sinistros vilões das sagas do 007 como Elliot Carver, Hugo Drax ou Ernst Blofeld, tão pouco devemos ignorar que personagens como o ministro Moraes estão mais próximas de personagens como High Sparrow, do Game of Thrones do que de garantes da justiça em prol dos cidadãos que diz querer proteger.

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