Se em momentos de normalidade, o pensamento contra o estabelecido, a corrente dominante, já é fortemente atacado, num momento como este em que vivemos — de pânico, alarme, medo e irracionalidade — ir contra o pensamento instituído e amplamente divulgado é ainda mais alvo de crítica, sendo esta mais generalizada e acérrima. Imagino então que serei muito criticado pela opinião que vou exprimir neste texto. Contudo, esta minha apreciação destina-se, primordialmente, à reflexão de todos. Irei tentar responder à questão em título, tecendo algumas considerações e levantando outras questões cujo principal objectivo é, como referi, um mero instigar à reflexão.
Na espuma dos dias que correm, no lufa-lufa de informação nova sobre o vírus e todo o seu desconhecimento, de matemática diária entre número de infectados, de mortes e de rácios vários, houve algo que se perdeu. Foi a pergunta básica e inicial: Por que estamos em “prisão domiciliária” há um mês?
Há, talvez, duas respostas a esta questão. Uma mais imediata e que foi a mais propalada pelas autoridades de saúde e uma outra mais, diria, ético-cívica que é menos óbvia. Comecemos por esta última.
Foi muito difundida a mensagem: “Proteja-se a si e aos outros, fique em casa”. Com esta e outras mensagens assistiu-se a uma diminuição do estatuto do indivíduo, da sua liberdade e responsabilidade, da sua individualidade, em nome de um bem comum, colectivo, de toda a sociedade. Veiculou-se a ideia de que a incúria de um seria a doença de outro. Por comparação com o “responsável”, o “irresponsável” traria dano ao “inocente”. Mas até que ponto será isto mesmo assim? Vejamos.
Suponhamos que ao fim de 14 dias de confinamento geral (período de tempo a que muitos países asiáticos recorreram para um despiste generalizado da doença), se decidia abrir todos os estabelecimentos considerados não essenciais, isto é: cafés, restaurantes, cinemas, ginásios, lojas, etc. O que aconteceria? Os clientes que quisessem frequentar estes locais fá-lo-iam, mas os que não quisessem, e tratando-se de bens ou serviços não essenciais, não teriam que o fazer, ficando por isso resguardados de qualquer contaminação. Haveria depois a escolha por parte dos funcionários dessas empresas. Haveria uns que, na sua concepção de risco/benefício, aceitariam ir trabalhar, tomando as devidas medidas profilácticas e haveria aqueles que não aceitariam ir trabalhar, entrando no regime de lay-off ou numa baixa médica provisória, recebendo uma fracção do seu vencimento. Por fim teríamos a escolha das empresas. Na sua análise sobre o número de clientes e o número de funcionários necessários, decidiriam em consonância, podendo ser necessário contratar para substituir os que optassem por não ir trabalhar, ou podendo laborar apenas com os funcionários que quisessem ir trabalhar ou, ainda, percebendo que teriam de fechar completamente nos mesmos moldes do que agora sucede. No limite poderia chegar-se à mesma situação actual, mas com uma grande diferença: é que teria sido dada possibilidade de escolha aos agentes económicos de agirem por sua livre iniciativa, face à situação concreta de cada um. Não só por esse mecanismo, a situação global seria melhor para o país (sendo sempre a cada momento analisada pelos agentes económicos a crise sanitária e económica) como instilaria no cidadão e no empresário o tão profícuo comportamento de liberdade/responsabilidade, inerente à vida humana em sociedade.
Mas suponhamos que, a acção de um individuo “irresponsável” provoca consequências nefastas num outro, ou seja, que não há forma de, nalguns casos, um indivíduo evitar ser contagiado. Não é então isso viver em sociedade? Com base no mesmo pressuposto e lógica não seria legítimo banir-se amanhã, por exemplo, o trânsito automóvel, já que também potencia acidentes, até eventualmente muito graves? Enquanto que na situação referida eu posso passar à porta do café sem entrar, evitando por isso ser contagiado, no que toca à circulação automóvel eu posso ser atropelado ou sofrer um acidente de carro sem ter tido qualquer culpa. Este é apenas um exemplo de muitos que poderiam ser dados.
Mas sendo assim por que razão há uma preocupação tão grande da maioria dos Estados com este caso em particular? Será apenas por razões de mortalidade anormal provocada pelo vírus? Procurarei responder a estas questões no final.
No cenário traçado acima caberia ao Estado informar, criar as condições legais para a defesa da escolha dos agentes económicos, eventualmente, criar até algumas restrições, e monitorizar eventuais excessos e abusos que pudessem ocorrer.
Seria também competência do Estado, proteger os idosos e os vulneráveis que vêm a sua liberdade de escolha bastante diminuída dada a letalidade do vírus nesses grupos (a média de idade dos óbitos por covid 19 em Portugal ronda os 80 anos). Aqui, o Estado não devia olhar a meios. Foi também aqui, infelizmente, que Portugal e outros Estados Europeus falharam rotundamente.
Como referi no início do texto, foi também repetido várias vezes que esta “prisão domiciliária” foi decretada com a preocupação de achatar a curva de mortes, diminuindo e atrasando o pico para regular a sobrecarga dos serviços de saúde. Ora, já nem referindo que todos os modelos que estiveram na base das medidas aplicadas falharam, que o pico esperado foi por três vezes adiado e que até o conceito de “pico” foi substituído pelo de “planalto”, mesmo esta preocupação com a possível insuficiência do SNS e com o avolumar das mortes me suscita algumas dúvidas.
Como se vê, mesmo não tendo o sistema de saúde entrado em ruptura, e havendo por isso meios para tratar os doentes, morreram, até ao dia em que escrevo, 599 pessoas. Isto porque, como é um facto da vida, a morte é uma inevitabilidade. Isto o que nos diz é que mesmo que o sistema de saúde tivesse entrado em ruptura e mais pessoas tivessem morrido, não se poderia atribuir essas mortes adicionais à ruptura do mesmo. Não se pode negar que, havendo mais meios para tratar, haverá mais pessoas que se conseguem recuperar, mas não se pense que essa relação é directa. Por mais cuidados médicos que possam existir e recorrendo a todas as tecnologias actuais, há mortes que não são possíveis adiar. Não deixa de me espantar, uma vez mais, a preocupação exacerbada , quer das autoridades quer dos media, com as mortes por covid 19 em Portugal. Por ano, e por insuficiência do SNS, morrem em listas de espera e por infecções víricas e bacterianas em Portugal milhares de portugueses. O que sucede todos anos, ao longo de vários anos. Os danos desta pandemia respeitam a apenas a um ano. Porquê agora um tratamento tão diferente relativo às mortes por esta doença?
Penso que a resposta é multifactorial. É claro que o pânico, o alarme, o desconhecimento do vírus e o impacto massificado terão desempenhado um importante papel em tudo isto. Contudo, creio que o principal factor foi político, potenciado pelo maior escrutínio e foco dos media e da sociedade civil. Os vários governos lutaram pela sua sobrevivência e caíram na velha armadilha da governação: Salvar uma vida que se vê e se conhece a troco de outras que podem ocorrer no presente e no futuro, mas que são desconhecidas do público e não têm uma causa directa atribuível à actuação política. Qualquer morte nesta crise seria imputada aos governos por falta de acção mais firme, no entanto, qualquer morte no futuro, motivada pelas economias que ficaram num estado mais débil, os governos tentarão imputar ao vírus. Prevê-se agora que o PIB português não só deixará de crescer como estava previsto antes da crise, como ainda poderá contrair na casa dos 8%. Estamos a falar duma perda de riqueza equivalente ao que se gasta num ano em toda a saúde pública em Portugal. Quantas mortes será suposto assumir que tal perda provocará no nosso país?
Por ano morrem, em todo o mundo, 400 mil pessoas de malária, sendo metade delas jovens. Quantas mais morrerão pela contração económica global de 3%? Há no mundo mais de 840 milhões de pessoas subnutridas. Quantas mais se somarão? Morrem mais de 17 mil pessoas por dia à fome e 240 mil por ingestão de água não tratada. Quantas mais mortes irão acrescer a estes tristes números, com a brutal quebra económica?
O valor da vida humana deveria ser igual seja ela de um ser humano em África, na Europa ou na Ásia. Como deveria ser igual seja ela porque razão for. Acontece porém que, politicamente, e pelo que se assiste, o valor da vida humana afinal não é igual, dependendo do país em que se vive mas também da causa da sua morte.
Não pensem por isso que só devemos estar preocupados com as mortes e as perdas nesta fase, derivadas directamente de infecção por Covid. Devemos – e os governos deveriam estar — preocupados no combate actual, mas já deviam estar a prevenir a mitigação de mortes e perdas futuras. E quanto mais tempo de “prisão domiciliária”, pior será o futuro próximo.