Prometi a mim mesmo que não me ia meter no debate das touradas. E não vou, apesar do título desta crónica poder dar a entender o contrário. Aquilo para que quero chamar a atenção é a falta de qualquer racionalidade no nosso código do IVA. E ter impostos minimamente racionais é uma questão de civilização. E o IVA é uma boa forma de ilustrar o quão pouco civilizados somos no que respeita à fiscalidade.

Comecemos pelo princípio. Genericamente, um sistema fiscal deve ser o menos intrusivo possível. Com isso quero dizer que, salvo motivos de força maior, não faz sentido que os impostos, além de nos retirarem rendimentos, alterem as nossas escolhas. Adicionalmente, um imposto deve ser tão simples quanto possível. Como o IVA é dos impostos que mais receitas geram, é importante que obedeça a estes princípios, caso contrário distorcerá em demasia as escolhas dos consumidores. O corolário do que escrevi é que a taxa de IVA devia ser única e igual para todos os produtos. Se se fizesse isso, a sua (quase) neutralidade estaria assegurada.

Tipicamente, argumenta-se contra o IVA porque é um imposto que se aplica da mesma forma a ricos e pobres. Mais importante ainda, se tivermos em atenção que quem tem rendimentos mais elevados costuma ter taxas de poupança maior, então podemos mesmo falar em imposto regressivo, com os pobres a entregarem uma fatia maior do seu rendimento ao Estado do que os ricos — eu contestaria este argumento, dizendo que a poupança de hoje é consumo de amanhã, pelo que também pagará imposto, mas já discuti isso noutros artigos, logo não vale a pena aprofundar o assunto. A forma de anular essa regressividade do imposto é ter um IVA mais baixo para bens essenciais. Susana Peralta (especialista em Economia Pública) explicou bem esse argumento nas páginas do Público.

O problema desta ideia, bem-intencionada, é que há outros impostos que permitem fazer esta redistribuição de forma muito mais eficaz. O IRS, por exemplo, é um imposto bastante progressivo. Como tal, já faz esse papel. Tentar usar outros impostos para aumentar a progressividade apenas faz com que seja mesmo difícil perceber, em Portugal, quão progressivos são os impostos. Há quem argumente que, para rendimentos muito baixos, o facto de se pagar zero de IRS não é suficiente, daí a necessidade de ter IVA mais baixo nos produtos essenciais. Mas esse argumento, na minha opinião, é um erro.

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E é um erro por diversos motivos. Em primeiro lugar, porque nada obriga a que a taxa mínima de IRS seja zero. Pode perfeitamente ter-se um escalão de IRS com taxas negativas, ou seja, quem tem rendimentos mais baixos receberia IRS em vez de pagar. Há países com soluções deste tipo. Além de que há todo o tipo de políticas sociais que são dirigidas aos mais pobres. Definir um conjunto de produtos que terão um IVA mais baixo é uma política redistributiva muito complexa e condenada a fracassar num sem número de casos. Por exemplo, de que adianta a alguém intolerante ao glúten que o pão tenha IVA reduzido? Ou que o leite tenha IVA reduzido se for intolerante à lactose. E se o objectivo é fazer política redistributiva com o IVA, qual é a lógica de incluir o pão? Os mais ricos não comem pão? Além de que há pão muito caro, inacessível aos mais pobres, que também tem IVA à taxa reduzida . Que política redistributiva é esta? Além disso, quando se define uma lista de produtos essenciais, é quase garantido que há falhas absurdas. Por exemplo, o queijo e o fiambre pagam taxas diferentes de IVA: qual é a lógica? Inconsistências destas há muitas e são inevitáveis.

Adicionalmente, a partir do momento que há IVA diferenciado, há espaço para os diversos lóbis se mexerem. Exigir um IVA mais baixo é muito mais fácil, apesar de ser equivalente, do que pedir um subsídio. É muito mais fácil aos clubes de futebol exigir que os bilhetes de futebol tenham IVA reduzido do que exigir um aumento de subsídios. E, de certa forma, têm razão. Se há espectáculos com IVA reduzido, porque não há-de o espectáculo de futebol ter um IVA mais baixo também?

Basta olhar para IVA de vários produtos e serviços para perceber a actuação dos lóbis. Se for a um restaurante de luxo, o IVA que é pago é de 13%. Se beber uma cerveja, paga 23% de IVA, já se beber um vinho de 150€ paga apenas 13%. Ou seja, andamos a subsidiar gastos supérfluos de gente rica. Exemplos destes abundam. Como disse, convido quem me lê a ir ver a lista dos produtos e serviços que pagam a taxa reduzida ou intermédia do IVA. Se o fizer vai, por exemplo, descobrir que, se contratar um serviço completo, que inclui o caixão e flores, a uma agência funerária, não paga IVA. Mas já pagará 23% de IVA pelo caixão e pelas flores, caso não os compre à agência.

Mas, dado que a Ministra da Cultura usou a civilização como argumento contra as touradas, deixem-me que vos chame a atenção para aquilo que é um espantoso atraso civilizacional. As medicinas alternativas, como a homeopatia e outras palermices do género, também têm um estatuto privilegiado de IVA. Regredimos ao tempo dos vendedores de banha da cobra. Quando devíamos estar a discutir a legalidade deste tipo de fraudes ser vendido nas farmácias, estamos, pelo contrário, a subsidiá-lo e incentivá-lo. Se for comprar um medicamento homeopático, que é basicamente nada com água e açúcar, paga o mesmo IVA que paga por um Benuron: 6%.

Foi em 2016, por proposta do BE e do CDS, que os prestadores destes serviços fraudulentos passaram a estar isentos de IVA. E, com honestidade, se no futuro, cartomantes, bruxos e bruxas e astrólogos exigirem a mesma isenção, poderemos criticá-los?