Ao ouvir os promotores da chamada eutanásia, fica-nos esta dúvida: para quê debater? Para quê votar? Porque é que a eutanásia não foi imediatamente legalizada na terça-feira? Só porque a maioria dos deputados votou contra? Mas que importa? Não foi desta, será da próxima, como nos referendos do aborto. Para quê então perder tempo com debates e votações, se o resultado final já está decidido?

Teremos tantas votações quantas as necessárias até o parlamento acertar na resposta certa É óbvio que tudo seria diferente se a eutanásia tivesse ganho, mesmo que por um voto. Nesse caso, o processo teria sido encerrado definitivamente, e quem, por acaso, propusesse nova votação, seria universalmente desprezado como alguém que não sabe aceitar a vontade da maioria.

É notável como os argumentos e as apreensões que levaram a maioria dos deputados a votar contra a legalização não inspiraram aos adeptos da eutanásia um segundo sequer de pausa e meditação. Foi como se tivessem esbarrado num obstáculo inanimado, e não no que outras pessoas pensam e sentem. Esta absoluta indiferença pelas ideias e sensibilidades dos outros constituiu sempre a força do sectarismo. Os cultores da eutanásia, tal como os do aborto, são gente que não tem dúvidas e nunca vê dificuldades. Julgam-se uma inevitabilidade histórica, perante a qual qualquer divergência é fútil.  Debates e votações são, para eles, meros formalismos, cujos resultados podem ignorar.

A verdade, no entanto, é que, em todas as campanhas “fracturantes”, a última votação é sempre aquela que lhes é favorável. Está a história mesmo do seu lado?

Convém começar por notar a diferença entre os principais argumentos de um lado e do outro. O trundo dos promotores da eutanásia é a tese de que a legalização não obrigaria ninguém a fazer nada. Aumentaria apenas o menu de opções de cada indivíduo. Ou seja, para quem não concorda, seria indiferente que a eutanásia fosse ou não legalizada e proporcionada pelo SNS. Portanto, porque não?

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O ponto de partida dos críticos da eutanásia é completamente diferente: é o princípio de que a vida dos outros me importa, e que tudo, mesmo o que não incomoda o meu egoísmo, tem a ver comigo. Por isso, na eutanásia, não estaria apenas em causa a vontade de quem quer ser morto, mas a responsabilidade de quem tem de matar e a moral de uma sociedade que deixa matar.

Percebe-se assim como este é um enfrentamento desigual: de um lado, pede-se a simplicidade de um encolher de ombros; do outro, o incómodo e a complicação de nos preocuparmos para além do próprio umbigo.

A dessacralização do mundo teve consequências. A concepção da vida ou da liberdade como algo de inviolável ou de inalienável deriva ainda de uma cultura religiosa – ou de uma cultura secular mas de base religiosa –, em que cada indivíduo se sentia parte de um todo providencial, que valorizava a vida e a liberdade de cada um para além de qualquer opção individual. A eliminação da transcendência não tornou apenas tudo relativo: reduziu-nos às nossas vontades e aos nossos interesses, que se transformaram na medida dos “direitos”. Neste mundo, toda a complexidade ética e jurídica desapareceu, consumida pela suposta soberania de um indivíduo desprendido de todos os outros, e indiferente a tudo o que não lhe diga directamente respeito. Porque é que me hei de ralar se o meu vizinho quiser ser assassinado por um médico num hospital? Que tem isso a ver comigo? Que se lixe.

John Donne ainda pôde imaginar que os sinos, quando tocavam, tocavam por cada um de nós. Hoje, vivemos numa época em que, quando ouvimos os sinos, julgamos que tocam só pelos outros. Ora, a indiferença foi sempre o pior de todos os adversários e o melhor de todos os aliados.