A economia está a crescer, o emprego encontra-se em máximos históricos e a inflação diminui. Os indicadores de confiança dos consumidores têm subido, embora o clima económico se tenha deteriorado, reflexo de perspetivas menos animadoras de todos os sectores. Usando outros sinais menos ortodoxos, como o trânsito ou a frequência dos restaurantes e hotéis, tudo aponta para um Portugal muito dinâmico. Porque fazem então os portugueses uma avaliação tão negativa, como aquela que resulta da sondagem do ICS/ISCTE publicada no Expresso? E porque diz o Presidente da República que o crescimento não está a chegar às pessoas? Esperando, aparentemente, o Governo que contagie os portugueses mais na segunda metade do ano.
Admitindo que um dos factores que faz a nossa felicidade é o consumo, aqui poderia estar uma explicação. Usando os dados macroeconómicos, de facto o consumo está a crescer mais lentamente do que a economia no seu conjunto. O PIB subiu 2,5% mas consumo privado aumentou apenas 1,8%, no primeiro trimestre quando se compara com igual período do ano anterior. Mas o contra-argumento para esta explicação está no facto de ter aumentado muito em 22, quando se recuperou o que não se consumiu em pandemia. Apesar disso, se considerarmos que, no inquérito aos consumidores, degradaram-se as perspetivas de fazer compras importantes, esta explicação, de um consumo inferior ao que desejariam, pode estar a dar um contributo para o descontentamento.
Se olharmos agora para o crescimento por sectores de actividade, podemos encontrar aí outros argumentos. Com efeito, o crescimento está longe de ser homogéneo, o que não é uma surpresa. Por exemplo, em 2022, um crescimento da economia de 6,7% tem por trás desde uma quebra de quase 3% na agricultura silvicultura e pescas até um aumento de 17% nos sectores do “comércio e reparação de veículos; alojamento e restauração”, leia-se turismo. Deste ponto de vista, o crescimento não está a chegar a todos. E se admitirmos que o turismo tem dado emprego, nos últimos tempos, à imigração, o crescimento do emprego pode não estar a ser realmente percepcionado pelos não-imigrantes.
Mas será isto suficiente para uma avaliação tão arrasadora como aquela que lemos na sondagem? Pedro Magalhães, coordenador da sondagem do ICS/ISCTE para o Expresso e a SIC, considerou, no “Expresso da Meia Noite”, que boa parte das matérias alvo do inquérito estão relacionadas com temas de longo prazo. Se olharmos para as questões e fizermos um exercício, sempre subjetivo, de as classificar como temas puros de políticas públicas e temas, digamos, mistos, que dependem do Estado, mas também dos cidadãos e empresas, verificamos que a responsabilidade do Estado, indiretamente do Governo, corresponde a 8 dos 15 assuntos que foram inquiridos.
Em termos gerais, os portugueses avaliam de forma muito negativa as políticas públicas, como a política de rendimentos – em que se incluem os impostos e o combate à desigualdade -, bem como os serviços públicos na saúde, na educação e na justiça. Este é um resultado que reflete, em parte, a escolha que o Governo de António Costa fez de reduzir o desequilíbrio orçamental à custa da degradação do Estado e das políticas económicas. Durante os primeiros seis anos da sua governação, criou a expectativa de que era possível reduzir o défice público sem dor. E essa dor começou a chegar agora. Além disso, tivemos anos em que não existiu qualquer estratégia de médio e longo prazo que pudesse alterar, no futuro, aquilo que a falta de dinheiro estava a causar nos serviços públicos.
Mas aquilo que parece ser esmagador é a perceção de que pagamos demasiados impostos e que a desigualdade está a aumentar. Se no caso da tributação existem indicadores para todos os gostos, no que diz respeito à desigualdade não é bem assim. Com uma importante nuance que acaba por contribuir para a ideia de impostos demasiado pesados, sem que cumpram tão bem como no passado a sua função redistributiva.
A política fiscal tem sempre participado para reduzir as desigualdades, mas em 2021 deu o seu mais baixo contributo desde 2013, ano ainda da troika. De acordo com dados do INE, publicados no quadro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, foi de 5,7 pontos percentuais o contributo para a redução da desigualdade por parte da política fiscal e das contribuições sociais pagas pelos empregados. Só encontramos um valor mais baixo (-5,1) em 2012, o pior ano do programa de ajustamento. A desigualdade diminuiu (quanto mais baixo o índice menor a desigualdade), depois de se ter agravado no pior ano da pandemia, mas diminui mais quando se calcula a partir do rendimento bruto do que com o rendimento líquido, devido a esse menor contributo redistributivo da política de impostos e contribuições.
Estão os portugueses a percecionar essa diferença? E com isso a considerar os impostos como demasiado carregados? Ou os impostos estão a ser demasiado pesados porque não têm como contrapartida serviços públicos avaliados como de qualidade? Não é fácil chegar a uma conclusão.
Há ainda uma última hipótese de explicação para o descontentamento arrasador exposto na sondagem do ICS/ISCTE – sem ser obviamente a cultura do fado. E essa passa pelas teorias da economia comportamental e da felicidade. E neste universo podemos encontrar duas possíveis explicações.
A primeira relacionada com alterações do grupo com que comparamos a nossa situação económica e financeira. Vários estudos têm mostrado que, mesmo que o nosso rendimento aumente, ficamos infelizes se o grupo com que nos comparamos regista uma prosperidade maior do que a nossa. É a posição relativa que conta para a nossa felicidade – se ela se deteriora, mesmo que estejamos melhor, sentimo-nos pior. O crescimento do turismo e de residentes não habituais com maior poder de compra, visível por exemplo, no crescimento das habitações de gama alta ou na proliferação de marcas de luxo na baixa de Lisboa, pode ter gerado uma alteração no grupo de referência. Afinal hoje vemos um luxo que não víamos no passado. Pode ser uma hipótese explicativa absurda, mas não se deve desvalorizar.
A outra explicação está relacionada com expectativas. Além da comparação com os outros também fazemos um confronto com aquilo que esperávamos. Pode ser um erro político prometer amanhãs que cantam e a música que acaba por chegar não ser aquela que esperávamos ou que nos prometiam. E, neste caso, o Governo de António Costa está aqui também a colher o que semeou, quando criou a famosa frase de “virar a página da austeridade”, prometendo implicitamente tempos de grande prosperidade para todos. Esses tempos não chegaram pelo menos com a dimensão que, aparentemente, as pessoas esperavam.
Pode não existir apenas uma explicação e todas elas contribuírem para se perceber porque é que nestes tempos de prosperidade e crescimento a avaliação dos portugueses é tão arrasadora. A degradação dos serviços públicos, a dificuldade que se tem de interagir com o Estado quando precisamos de papéis ou quando queremos uma escola para os nossos filhos ou exames médicos, tudo isso pode ser motivo de desagrado. O que é difícil de compreender é a dimensão arrasadora do descontentamento.