Antes de abordar o actual impasse eleitoral espanhol, é de chamar a atenção para um paradoxo que salta à vista quando comparamos as situações políticas e económicas em Portugal e em Espanha. No plano político, enquanto Portugal goza, oficialmente, de um governo apoiado por uma inesperada mas confortável maioria parlamentar que vai do PS até ao BE e ao PCP, a Espanha está desde há mais de oito meses sem ser capaz de formar novo governo e, segundo se crê, pode ter de ir a votos pela terceira vez em Dezembro próximo (logo no dia de Natal!), sem a certeza de chegar a um resultado que permita a constituição de um governo capaz de obter a investidura do parlamento espanhol a eleger.

E contudo a situação económica portuguesa é aquela que se sabe: a dívida cada vez maior (130% do PIB) e juros sempre a aumentar (3,5%); défice permanente do orçamento de Estado, o qual, depois de ter ultrapassado 50% do PIB no tempo de Sócrates, está de novo a consumir mais de metade da riqueza anual; pior: reversão de quase todos os cortes da despesa estatal que o anterior governo fez a fim de estancar o défice; pior ainda: estatização de empresas cronicamente deficitárias, como a TAP, privatizadas pelo governo anterior; mais grave talvez: crescimento perto de zero; investimento virtualmente nulo, seja privado ou público, nacional ou estrangeiro; exportações em queda e emprego estagnado; e para que nada falte: um sistema bancário que é um queijo Gruyère com buracos de milhares de milhões de euros, como sucede com a banca estatal – a CGD – onde o governo quer meter 5.000 milhões de euros! Ainda hoje o presidente do PS preparava o país para o falhanço governamental em todas as metas do orçamento de 2016.

Ora, entretanto, a Espanha tem a taxa de crescimento económico mais alta de toda a UE. Resta saber se não será por não ter governo e ser obrigada a cumprir aquilo a que se tinha comprometido há mais de um ano junto da UE?! É falso, portanto, que os portugueses tenham de estar agradecidos ao novo governo por qualquer melhoria aparente da situação económica: mesmo as pessoas que recebem hoje mais euros do que recebiam há um ano serão chamadas, mais cedo do que tarde, a contribuir para saldar as dívidas que entretanto se estão a acumular. E, se o governo ameaça agora aumentar os IMIs já pagos dos imóveis de um milhão ou de meio milhão de euros e se quer invadir as contas bancárias de mais de 50.000€, é unicamente porque já não sabe onde ir buscar o dinheiro que não tem para pagar as dívidas que contraiu! É por isso e nada mais, como se os partidos do governo tivessem mandato para agir como Robin dos Bosques… No fim, todos perderão, «ricos» e «pobres»!

Não é o caso da Espanha. Mesmo os partidos mais assanhados da alegada «esquerda», como o Podemos e os seus pseudónimos regionais, só evocam a questão económica por dever de ofício, prometendo pagar pensões e subsídios de desemprego que nem a economia espanhola pode pagar (não falemos da portuguesa). O que está em jogo no sistema político espanhol, impedindo a formação de um novo governo após duas votações sucessivas, é o fim do bi-partidarismo (PP+PSOE) perante a corrupção dos grandes partidos, o fosso geracional que se criou com a crise e a ameaça de ruptura por parte da Catalunha, processos estes que não têm aliás qualquer relação entre eles. Misture-se isso tudo com bastante ideologia herdada da guerra civil e temos os actuais quatro partidos em que se dividiram os dois antigos donos do poder em Espanha.

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Paradoxalmente ou não, quem melhor resistiu à mudança eleitoral foram, para bem da economia espanhola, os conservadores do PP, em boa parte herdeiros ideológicos da direita franquista e herdeiros da esquerda socialista no que diz respeito à corrupção e ao clientelismo… E quem mais perdeu foi o PSOE, que está impedido de se aliar à «esquerda radical», como fez o PS em Portugal, não tanto por causa do pretenso radicalismo do Podemos, mas sim por causa do centralismo do PSOE, adverso como é aos independentistas catalães, os quais, por seu turno, apoiam o Podemos a nível central na esperança de que este acabe por vergar – ou quebrar de vez – o PSOE.

Com o abalo sofrido pelo bi-partidarismo, o que está a crescer após as eleições de Dezembro de 2014 e de Junho de 2015 é o «partido» que há muito ganha todas as eleições em Portugal: o abstencionismo. Os «media» e os bem-pensantes dirão que é um sinal negativo de indiferença. Outros, mais realistas, dizem que o abstencionismo moderno é fruto do esbatimento das diferenças entre os partidos e de estes serem «todos iguais» perante o clientelismo e a corrupção… Foi assim, em todo o caso, que o abstencionismo começou em Portugal: em 1975 votámos quase 100%. Hoje, porém, as novas clivagens abertas pela crise parecem estar a ter reacender as chamas ideológicas da «direita» e da «esquerda» em Portugal.

Não é isto, porém, que sucede em Espanha, onde o abstencionismo é, sobretudo, uma manifestação contra todos os partidos por serem incapazes de chegar a um acordo para governar. A preferência manifestada nas sondagens é pelos conservadores e o grande responsável pelo bloqueio, que se arrisca a pagar isso caro, é o PSOE, em especial o seu improvisado líder, incapaz de se aliar com Deus nem com o Diabo… Uma situação destas pode vir a ocorrer em Portugal, se a actual «geringonça» se desconjuntar perante a situação económica, como é possível que aconteça mais tarde ou mais cedo!