“Já posso ir ao banco?” pergunta António Costa. “Sim”, responde von der Leyen
Alguém há 47 anos esperava que o regime que então se anunciava democrático, livre e justo acabasse com um presidente da República a fugir da sua própria sombra e um primeiro-ministro sorridente (de que rirá este homem?) a perguntar à representante da instituição que garante ao país o qb para manter as aparências do estado social: “Já posso ir ao banco?”
As presentes e muito espalhafatosas indignações em torno da referência aos resultados positivos conseguidos em sectores como a educação pelo Estado Novo não são mais do que uma manifestação de fraqueza de quem actualmente governa. Diaboliza-se quem refere os resultados do Estado Novo (resultados esses conhecidos e apresentados há anos, sem qualquer problema) porque se teme e tenta adiar o momento em que se vai confrontar a “democracia obrigatoriamente socialista” em que nos tornámos com o fosso entre quem faz parte da casta e quem está fora dela; com a falta de mobilidade social; com a diferença entre o anunciado e o realizado.
Quem nos governa está onde está pelo único e exclusivo mérito de ter estado no sítio certo, o PS, para, no momento certo, ascender aos cargos. Uma vez aí instalados apenas tratam de se manter no poder. Os socialistas tornaram-se numa espécie de turma que chegou aos cargos através de uma passagem administrativa e que fazem da ocupação do cargo o fim em si mesmo. Deixaram de ser responsáveis pelo quer que seja a não ser pela sua manutenção no poder e nessa matéria são de uma eficácia implacável.
Veja-se o caso da transmissão dos dados pessoais dos organizadores de manifestações acontecida na CML: os ministros Augusto Santos Silva e Eduardo Cabrita receberam a queixa dos manifestantes russos mas não fizeram nada porque, dizem, não era da sua competência. Fernando Medina, presidente da CML, também se isentou de responsabilidades. Começou por querer culpabilizar a lei que era antiga. Depois vieram os rumores sobre um membro do CDS e as alegações sobre o fim dos governos civis que levava ao célebre “a culpa é do Passos!”. Como cada uma destas acusações ia caindo – a lei era antiga mas não era parva; o militante do CDS não tinha qualquer responsabilidade no caso e a extinção dos governos civis (leia-se Passos Coelho) ainda menos, sobraram as culpas para Luís Feliciano, o funcionário da CML responsável pela protecção de dados mas que não teria sob o seu controlo os processos das manifestações. Sem explicações de maior Luís Feliciano foi demitido o que não deixa de ser estranho porque terá sido ele o primeiro a dar razão aos manifestantes russos.
(Aguarda-se pelo desenvolvimento das afirmações feitas pelo colunista João Gonçalves que descreve assim a exoneração de Luís Feliciano na sua página de facebook: “Quando [Luís Feliciano] recebeu a queixa dos manifestantes russos – a quem deu razão –, fez uma informação dirigida ao Presidente a comunicar que teria de participar a dita à Comissão Nacional de Protecção de Dados. Essa informação não foi despachada e “desapareceu”. O sinistro Medina chamou Luís Feliciano antes da conferência de imprensa de ontem e disse-lhe para apresentar a demissão. L. Feliciano recusou. Todo o seu gabinete foi então demitido em público, como vimos.”)
Portugal sofre as consequências de um governo de esquerda que tem como único objectivo manter o PS no poder, oferecendo consoante as conveniências do momento o controlo de sectores estatais – contratação colectiva e empresas de transportes ao PCP – ou a sua destruição como acontece com os serviços de veterinária para agradar ao PAN.
Mas não só. Em simultâneo o país viveu e vive a deliquescência da Presidência da República. O abandalhamento frívolo das instituições é um dos legados de Marcelo senão o seu principal legado. Marcelo, como todos os narcisos mais a mais se gostarem de se divertir como é o seu caso, sobrevalorizou a sua capacidade táctica. Agora acabou isolado e a discutir poderes com o primeiro-ministro. Pelo meio sopra a quem o quer ouvir que não há alternativa ao PS. Claro que não existe alternativa mas não existe em boa parte porque foi isso mesmo que ele Marcelo desejou e para o qual usou toda a sua influência mal chegou a Belém: a direita pós-2016 seria feita a partir dele, acreditou Marcelo. Enganou-se. Acabou prisioneiro de si mesmo a pedir para nos focarmos no essencial – o futebol – e a afirmar que “o Presidente nunca é desautorizado pelo primeiro-ministro.”
A avaliar pelo que se lê e ouve, Portugal tem à sua frente dois génios da política: Marcelo é um talento único e Costa está dotado de uma habilidade transcendente. Infelizmente tantas capacidades individuais traduziram-se quando conjugadas num dos períodos mais medíocres que o país conheceu,
Em 1973, o Expresso titulava na primeira edição que pôs na rua: “63 por cento dos portugueses nunca votaram.” Implícita nas entrelinhas estava a culpa da natureza ditatorial do regime que entre outras coisas não promovera sequer um recenseamento obrigatório, logo alargado, da população. Mas agora que nas legislativas de 2019 tivemos uma abstenção superior a 50 por cento e nas presidenciais de 2021 até superior a 60 por cento, não só não temos respostas prontas como não queremos fazer perguntas. Não apenas sobre o porquê desta situação mas sobretudo sobre o que vai acontecer quando a abstenção despertar.
Não sei se será a mobilização dos abstencionistas a desbloquear esta situação mas sei que em 2021 fazer de conta que não tem relevância que mais de metade do eleitorado opte por se abster é tão inconsciente, quanto em 1973, ter subestimado o facto de mais de 63 por cento dos portugueses nunca terem votado.