O mar é uma das maiores riquezas nacionais, ancestralmente um dos principais recursos de Portugal e uma das nossas grandes responsabilidades perante o mundo. E, todavia, persiste a ideia de que dele cuidamos insuficientemente, de que não o aproveitamos devidamente, de que é um pouco estranho ao nosso desenvolvimento e à nossa actividade corrente. E, enquanto permanecermos neste descaso, o mar é também um dos nossos maiores desperdícios.
Nos anos 70, produziu-se um abalo, uma quase rotura entre Portugal e o mar, e abriu-se um período de afastamento, que durou até ao fim da década de 90. O facto teve a ver com as independências dos territórios portugueses em África e no Oriente – foi efeito da estreita relação entre o mar e o ultramar. Os Descobrimentos fizeram-se pelo mar e seus marcos territoriais justificavam boa parte da nossa economia do mar. O declínio atingiu a marinha mercante e a construção e reparação naval. Pouco depois, as políticas europeias, que favoreciam o abate dos navios de pesca, vieram também perturbar o interesse e a pujança deste sector.
Entre novos Adamastores, o desinteresse pelo mar tornou-se geral e o peso na agenda política baixou ao grau zero. Parecia medo: medo político e medo económico. Sim, o mar continuava ali; mas dava ideia de que não sabíamos que fazer com ele, nem para que servia. A atitude dominante era olhá-lo como um fardo e não como infinita oportunidade, vê-lo como um custo e não como fonte de riqueza.
Reajustar levou algum tempo. Acabou por fazer-se por diferentes esforços, como os daqueles que o Almirante Nuno Vieira Matias, já falecido, chamava os “teimosos do Mar”. A viragem coincide com a EXPO’98, realizada em Lisboa, que teve por tema “Os oceanos: um património para o futuro”. E, já neste século, destaco duas iniciativas com impacto significativo: o Fórum Empresarial para a Economia do Mar, de que o meu irmão (Fernando Ribeiro e Castro, ex-oficial de Marinha, engenheiro construtor naval, professor) foi secretário-geral e a que dedicou com entusiasmo os últimos anos da sua vida; e a Fundação Oceano Azul, lançada pela família Soares dos Santos, em que se destacam José Soares dos Santos e Tiago Pitta e Cunha, grande apaixonado e especialista desta área, desde os anos 90. Também no terreno prático da economia apareceram e consolidaram-se novos actores e novas empresas, mostrando que o mar é, afinal, sinónimo de sucesso. Por todos, cito a Douro Azul e Mário Ferreira, que crescem na área da navegação e também da construção naval, recuperando, por exemplo, os Estaleiros de Viana do Castelo.
Hoje, a mesa já está posta. Há novo interesse pelo mar. Há muita procura por novas iniciativas. Afirma-se um novo paradigma nas atitudes perante o mar. Mas ainda não há a coesão, a consistência e o dinamismo que são, em teoria, possíveis e, na prática, indispensáveis. A gestão política articulada ainda é demasiado problemática, os impulsos são desgarrados, há projectos que tardam demasiado e, por conseguinte, entusiasmo que arrefece e se perde. Porquê? Porque a “governance” do Mar continua mal desenhada e insuficiente.
O mar é um território e, intrinsecamente, transversal. Não é uma matéria. É impossível confiá-lo inteiramente a um ministério e, aí, o confinar. Mesmo nas áreas enquadradas em departamentos concretos (Armada, transportes marítimos, pescas, portos), podem estar confiadas a ministérios distintos, consoante as opções orgânicas de cada governo. O Ministério do Mar é uma boa opção, mas não chega. Faltam-lhe as condições políticas e administrativas para, em todas as áreas governamentais, assegurar o governo transversal do que tem a ver com as políticas do Mar – e este é o problema.
No governo, só há um ministro com competência e autoridade para o fazer: o primeiro-ministro – e ele não tem tempo para isso.
O mar é Marinha de guerra, marinha mercante e transportes marítimos, pescas e portos, mas é muito mais. É educação e ensino, é sensibilização e formação, é comércio e indústria, é investimento, capital e fiscalidade, é shipping e registo, é turismo e lazer, é desporto, recreio e alta competição, é suporte de vida e esponja térmica, é ambiente e sustentabilidade, biodiversidade e preservação, é postos de trabalho, é aquicultura e energia, é superfície e mundo subaquático, é saúde e segurança social, é ciência, novas tecnologias e investigação, é história, cultura e património, é memória e identidade, é praias, costa e estuários, é segurança e polícias, é navegação e relacionamento internacional, é defesa, política externa e política europeia, e tanto mais.
Só uma instância com capacidade para enquadrar esta mais ampla transversalidade pode favorecer e proporcionar uma “governance” integral e articulada das diferentes políticas públicas relevantes para o Mar.
Essa instância é uma comissão parlamentar permanente para o Mar. Por um lado, porque, como é próprio do Parlamento, realiza a fiscalização permanente da acção dos diferentes ministérios com alguma competência que toque nos assuntos do Mar – e são praticamente todos, senão mesmo todos. Por outro, porque, ao realizar essa fiscalização política, ajuda o governo a manter a articulação bem oleada e com coerência e prontidão. O pressionante ajuda o pressionado, o fiscalizador ajuda o fiscalizado.
Dir-se-ia que isso é tarefa para uma comissão interministerial. Seria, se esta tivesse poder para isso – e não tem. A cronologia de todas as comissões interministeriais é conhecida: grande entusiasmo nos primeiros meses e, depois, a apagada e vil tristeza, afundando-se na frustração e crónica impotência.
A Comissão Parlamentar para as Políticas e Valências do Mar é a única solução válida e real para este problema incontornável da absoluta transversalidade das questões do Mar. Pode haver ministro do Mar – é bom que haja. Mas a comissão parlamentar é o seu maior e melhor aliado. Pode haver comissão interministerial – pode ser útil instalá-la. Mas ela só não perderá o entusiasmo inicial, se a comissão parlamentar permanente lhe abrir o terreno correspondente e, naturalmente, lhe der o poder para agir, que, como comissão interministerial subordinada, não tem e jamais teria. E, ao mesmo tempo, a Comissão Parlamentar coloca o Mar na agenda política e nas prioridades nacionais e favorece a continuidade e durabilidade das políticas estruturais de longo prazo, para além de cada legislatura e da alternância política de maiorias e governos.
Desde 2011 que animo esta causa, a que se juntam muitos outros “teimosos do mar”. Em 2022 e, de novo, agora em 2024, tem sido uma proposta liderada pela Sociedade Histórica da Independência de Portugal – o Mar também é a nossa independência nacional. E são várias as entidades que se agregaram numa chamada aos líderes políticos e à Assembleia da República.
Acredito que esta ideia é uma daquelas pequenas coisas que opera grandes mudanças. É um pequeno toque estratégico e multiplicador. As assinaturas dos peticionários mostram que a proposta não é apenas uma coisa de teóricos e curiosos, mas é a forte convicção daqueles que, já fazendo muito pelo nosso Mar e com ele, gostariam que se fizesse muito mais. Numa palavra, reivindicam que o Mar Português tenha “governance” à altura da nossa responsabilidade e que nos projecte rapidamente a nível mundial. Pedem a comissão parlamentar do Mar como pequeno grande passo para um enorme avanço na superação estratégica do nefasto estrangulamento estrutural que expus acima.
Com uma longa linha de costa continental, na ponta ocidental da Europa, e dois arquipélagos no Atlântico Norte, com uma área marítima que é dezoito vezes a área do nosso território terrestre, Portugal deve assumir-se como grande nação oceânica mundial. Podemos ser uma potência marítima, ao nível do Canadá ou da Noruega. Em toda a navegação, mas não só. Também no conhecimento, no saber, na investigação, na ciência. Em todas as áreas que ao mar dizem respeito. Podemos estar na linha da frente. Devemos estar na linha da frente, como o mar nos desafia, mal olhamos para ele.
Não nos falta tudo para encetarmos esse desígnio: quanto a mar, temos fartura. Temos também grandes vantagens competitivas e uma privilegiada localização estratégica. Só falta mesmo a inteligência de ousarmos o necessário.
Sim, vai levar tempo, investimento e trabalho, sermos aquela potência marítima. Essa é a razão por que temos de começar. Que tal começar já? Por que não começar hoje?