Quando há cerca de 15 anos tirei uma pós-graduação em Relações Internacionais na Universidade Católica interessei-me particularmente pelas diversas teorias das relações internacionais. O tema era quente na altura, com as intervenções militares dos EUA no Iraque e no Afeganistão ainda frescas. Neoliberais e neoconservadores debatiam-se à exaustão, com os realistas (e entre estes são várias as nuances, desde os clássicos ao realismo ofensivo ou defensivo) um pouco à margem, como se falassem para o deserto. O centro financeiro e militar da América fora atacado em 2001 e não havia muita margem para o pragmatismo puro e duro.

Um dos aspectos mais interessantes que retirei das leituras que na altura fiz foi que se, politicamente. as posições eram extremadas, o mesmo não sucedia no meio académico. Neste, o que se apercebia era que as divisões, não é que fossem ténues, mas que se diluíam perante as realidades. Se ‘Neorealism and Neoliberalism‘ é um compêndio de ensaios que reúne duas das tendências que se confrontavam, ‘After Hegemony‘, escrito por um neoliberal, procurava demonstrar que a cooperação entre os Estados não deriva apenas da hegemonia de uma nação. Pelo contrário, Robert Keohane considerava que, realisticamente, o interesse dos Estados cooperarem aumenta perante a ausência de um poder hegemónico. Ou seja, a cooperação neoliberal teria razões de interesse nacional que também podia advir do exame frio e real do quadro internacional do momento. Outros autores, como John Ikenberry, através da análise das reconstruções operadas após as guerras napoleónicas e das duas guerras mundiais do século XX, concluíram que mesmo as potências hegemónicas procuraram criar instituições de cariz internacional como garantes da paz. Na verdade, e no decorrer das histórias das várias potências, fossem estas hegemónicas ou não, a fronteira sobre a estratégia a seguir nas relações internacionais nunca foi linear. Talleyrand, Castlereagh e Kissinger que o digam.

Estes dois parágrafos servem apenas para referir que o que sucedeu esta semana no Afeganistão, apesar surpreendente, não foi uma surpresa. Há anos que Biden advogava a saída dos EUA; há anos que o interesse norte-americano é interpretado de forma mais restrita do que a seguida na década de 90 do século passado; ainda há pouco mais de 4 anos Trump defendeu o ‘America First’. A declaração de Biden no passado 16 de Agosto só diferiu das de Trump no cuidado que o primeiro teve com a linguagem. No fundo, os dois dizem o mesmo: que a América tem outros problemas para resolver que, de momento, não se relacionam com o Afeganistão.

Será a retirada das tropas norte-americanas um sinal de decadência dos EUA? Não necessariamente, se a saída for o reconhecimento de um erro ou a correcção de uma estratégia. Não há nada que nos leve a concluir que a fraqueza se mostra na confissão de um engano e não no seu cometimento. A saída foi desastrosa? Sem dúvida. Como em Saigão, em 1975. Mas foi essa retirada do Vietname que permitiu aos EUA, com Reagan, concentrar-se no que era importante: derrotar o império comunista, atacando-o no seu ponto fraco ao invés de o fortalecer com guerras infrutíferas.

É esta análise que os povos europeus também devem fazer: onde está o seu interesse? Qual a melhor forma de o concretizar? Quais os meios disponíveis? Quais as cedências que cada Estado europeu deve fazer no que diz respeito aos seus interesses de curto prazo para obter outros mais longínquos? Se já não vivemos no mundo da América hegemónica, qual o papel que sobra aos Estados europeus? Será que este se afirma no quadro da UE? E se sim, quando é que Bruxelas reconhece que a ordem internacional não se gere com projectos de intenções e declarações morais, mas com diplomacia e forças militares? Valerá a pena um exército europeu? Se sim, será este possível? Se não for dentro do quadro da UE, será do interesse dos Estados ficarem debaixo da protecção dos EUA? E em que termos? Em que condições? A que preço?

Talvez seja altura de, na Europa, pensarmos bem na resposta a estas e outras perguntas, ao invés de perdermos tempo a criticar a decisão de Biden. Esta foi tomada tendo em conta o interesse norte-americano. Biden foi frio e racional? Foi. Mas não esqueçamos que não são os Estados que decidem recuar que estão em decadência; são os que esperam por algo que não sabem bem o que seja. 

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