Caro leitor,

Tenho uma novidade e uma prenda de Natal, para si. Comecemos então pela prenda de Natal, já que atravessamos o período natalício. Todos os Portugueses vão ter no seu sapatinho um segundo mandato do presidente Marcelo. É uma ótima notícia, já que a larga maioria dos cidadãos votantes pretende um presidente que lhes dê afetos. E rigorosamente mais nada.

A novidade é que este segundo mandato não vai ser igual ao primeiro. O que não é uma boa notícia para os Portugueses que votam no Presidente Marcelo. E porquê? Não por vontade do próprio Presidente, porque este, como vamos demonstrar, pretende apenas estabilidade, aliás, desejo partilhado por todos os que nele votam, mas por culpa da pandemia e da gravíssima crise económica e social que está à nossa porta. Os próximos cinco anos vão ser muito duros e complicados. E o Presidente terá que, forçosamente, intervir na vida política portuguesa, diferentemente do que fez até aqui. Não vão bastar os afetos…

Façamos uma retrospetiva dos nossos presidentes da República desde o 25 de abril. Tudo começou com a Junta de Salvação Nacional que presidiu aos destinos do país durante 20 dias, de 25 de abril de 1974 até 15 de maio. No dia 15 de maio de 1974, António Spínola assume funções até 30 de setembro de 1974. É presidente por 138 dias. Depois segue-se o General Francisco da Costa Gomes, de 30 de setembro de 1974 a 14 de julho de 1976, ou seja, um ano e 288 dias. Seguiram-se os Presidentes Ramalho Eanes (de julho de 1976 a março de 1986 – nove anos e 238 dias), Mário Soares (de março de 1986 a março de 1996 – 10 anos), Jorge Sampaio (de março de 1996 a março de 2006 – 10 anos), Cavaco Silva (de março de 2006 a março de 2016 – 10 anos) e, por fim, Marcelo Rebelo de Sousa (de março de 2016 ao presente). Desde o Presidente Ramalho Eanes, estes anos de democracia confirmaram sempre a eleição do Presidente cessante para um segundo mandato. Estas eleições confirmaram sempre, nos últimos 45 anos, um estado de apatia moral e intelectual da maioria dos Portugueses ao votarem sempre da mesma forma, ratificando no segundo mandato a escolha efetuada na primeira eleição. A preocupação dos Portugueses é que o Presidente a eleger lhes garanta segurança, mesmo que esta se traduza no marasmo e na estagnação. Não interessa o estado da economia, a pobreza, o desemprego, a corrupção e a pandemia. Mas esta preocupação doentia com a estabilidade, com os consensos, com o equilíbrio de poderes, tem um preço.

Os afetos, a empatia, a proximidade com as pessoas, e até a cumplicidade na dor, determinam para uma grande maioria dos Portugueses a sua escolha e o seu voto. Mas a pergunta que se impõe fazer é se estas características de quem exerce a função de Chefe de Estado são suficientes para determinar o voto num Presidente, num país onde se vivem momentos muito complexos. Por força das circunstâncias, não precisamos de ter um Presidente para espalhar afetos, mas sim de um Presidente que exerça o seu poder. Em Portugal, vigora um sistema político semipresidencialista com tendências parlamentaristas. O Presidente da República, eleito por voto direto, deveria fiscalizar o Governo, sendo ele o responsável por nomear o Primeiro-Ministro, tendo o poder de dissolver a Assembleia da República e de demitir o Governo, como define o artigo 133.º da Constituição da República. Realçamos os termos do artigo 120.º do mesmo diploma, onde se afirma que o Presidente deve zelar pelo regular o funcionamento das instituições democráticas. O que fez o Presidente durante todos estes anos? Fiscalizou o Governo? Para os mais distraídos, lembramos aqui alguns marcos desta magnífica presidência!

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Em primeiro lugar, o Presidente Marcelo não soube cuidar da grave crise dos incêndios em 2017. Ameaçou exigir o apuramento de todas as responsabilidades e no seu célebre discurso em Oliveira do Hospital, em outubro de 2017, garantia que iria romper com os erros do passado. Que quem não o fizesse não teria “entendido o que se passou”. Garantia que Pedrógão seria um pilar decisivo do seu mandato e que se empenharia pessoalmente no caso. Passados três anos, sem querermos ser demagogos, podemos afirmar que falhou redondamente.

Na eleição da nova Procuradora Geral da República, do Presidente do Tribunal de Contas e do Presidente do Banco de Portugal foi um perfeito cúmplice do Governo socialista. Poderia ter agido de forma diferente? Poderia, sim. O artigo 133.º define a competência do Presidente quanto a outros órgãos; na sua alínea m), lê-se o seguinte: “Nomear e exonerar, sob proposta do governo, o Presidente do Tribunal de Contas e o Procurador Geral da República”. De facto, o governo propõe. Mas o Presidente é obrigado a nomear a pessoa designada na primeira proposta do Governo? Não pode questionar as escolhas políticas do Governo, quando estas não se baseiam na competência, idoneidade e seriedade, mas noutros motivos políticos pouco atendíveis? Todos nós nos recordamos, certamente, como o Presidente e o Primeiro-Ministro convergiram no afastamento da Dra. Joana Marques Vidal do lugar de PGR depois de anos de combate à grande corrupção. Na escolha do atual Governador do Banco de Portugal, sendo esta nomeação da competência exclusiva do Governo, não choca ao atual Chefe de Estado a escolha caber ao atual Ministro das Finanças (sendo depois alvo de resolução do Conselho de Ministros), o recém-empossado Ministro João Leão, poucas semanas depois de ter sido este último indicado pelo Ministro das Finanças cessante e futuro Governador do Banco de Portugal? Mais uma vez, esta nomeação comprova a falta de independência de uma instituição que deveria ser totalmente independente do Governo e que por vontade do poder socialista deixou de o ser.

O que se passou em Tancos? No meio de tanta mentira e de falta de respeito pela legalidade, pode o Presidente afirmar que não teve conhecimento, que não foi informado, sendo Comandante Supremo das Forças Armadas? Alguém, com um mínimo de imparcialidade, pode dizer que o atual Presidente cumpriu as suas funções?

No caso da morte de Ihor Homeniuk, disse o Presidente da República, num caso tão grave como este, que não pôde pronunciar-se durante nove longos meses, porque esperava pela resolução do inquérito e das averiguações judiciais. Deve o Presidente da República esconder-se sempre atrás das investigações e do apuramento das responsabilidades, para poder pronunciar-se sobre qualquer caso grave que aconteça na vida coletiva do seu país? Não existem formas de intervenção pública que lhe permitam ter uma atitude consentânea com a sua função e evitar desta forma o descalabro da autoridade do Estado? Não poderia ter dito logo, frisando a separação de poderes, ser lamentável a morte de um cidadão estrangeiro à guarda do Estado português?

O que estes anos revelam é que o Presidente Marcelo sempre se mostrou um acérrimo defensor de todas as políticas do Governo; repito: todas. Nunca estimulou reformas do governo durante o seu mandato. Deu sempre o seu aval a uma gestão conjuntural da economia e a uma estabilidade política que se revelou efémera e oportunista. É ainda cúmplice de António Costa na catastrófica gestão socialista da pandemia.

Também foi este Presidente que promulgou uma lei que permite a um Estado, que é o nosso, que nem sabe que imóveis possui, expropriar à vontade. Remetemos para a Lei n.º 59/2020 de 12 de outubro, que autoriza o Governo a aprovar um regime especial aplicável à expropriação e à constituição de servidões administrativas.

No artigo 136.º da Constituição, lê-se que o Presidente tem poderes de promulgação e veto. Se o direito de veto pode ser utilizado nos termos da lei, por que foi tão pouco utilizado? Por criar instabilidade política? Deverá este argumento fundamentar sempre a gestão da coisa pública e isentar de responsabilidade política um Chefe de Estado que não atua?

O importantíssimo artigo 134.º da Constituição, que rege a competência do Presidente para prática de atos próprios, permite, nas suas alíneas g) e h), “requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de normas constantes de leis e decretos-leis” e “requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas jurídicas, bem como a verificação de inconstitucionalidade por omissão”. Quantas vezes foram utilizadas estas prerrogativas pelo Presidente Marcelo?

Estes anos do mandato do Presidente Marcelo revelam uma verdade indesmentível: uma clara cumplicidade política demonstrativa do famoso “centrão” que tomou posse do aparelho do Estado, com prejuízo direto do interesse público. Como já referi no último artigo que escrevi no Observador, a 11 de dezembro, “Porque falhou Portugal como país”, a prática política em Portugal tem estado subordinada aos interesses dos partidos do sistema, ou seja, PS e PSD. Aliás, como é sabido, esta prática é a principal causa da abstenção eleitoral e do desinteresse da grande maioria dos cidadãos pela situação do seu país.

Não defendo neste artigo uma intervenção presidencial por motivos pessoais ou por pura conveniência política no exercício da função presidencial. Lembro, a este propósito, que Ramalho Eanes aproveitou o seu último mandato para se vingar de Mário Soares e lançar as sementes do Partido Renovador Democrático (que em 1985 tirou muitos votos aos socialistas). Lembro também, que no segundo mandato de Soares, este foi um verdadeiro líder de oposição ao segundo Governo de Cavaco Silva. Também foi Jorge Sampaio que derrubou o Governo de Santana Lopes, o que permitiu o acesso ao poder de José Sócrates.

Defendo, sim, uma intervenção do Presidente da República quando estão em causa os alicerces da própria democracia, o tal regular funcionamento das instituições democráticas.  A segunda presidência de Cavaco Silva foi manchada pela conivência com o pior governante que tivemos até hoje, José Sócrates. A atual Presidência da República mostrou ser conivente com a pior governação dos últimos vinte anos.

Se não cabe ao Presidente imiscuir-se na vida partidária, cabe-lhe, seguramente, intervir na vida política portuguesa de modo a garantir o bom funcionamento das instituições. No exercício das suas funções, o Presidente não se pode demitir das suas responsabilidades e não pode deixar de vincar a sua visão reformista e de futuro para o país. Os superiores interesses da Nação exigem o exercício da gestão pública, não apenas a distribuição de afetos. Não basta ser-se uma pessoa séria para exercer o cargo, é preciso transformar essa honestidade e seriedade num exemplo para a coletividade. Quando existe uma má governação, é obrigação do Presidente intervir na sociedade, por todos os meios que estão ao seu alcance. Se os meios jurídicos não são os suficientes, como já referi aqui alguns, é preciso intervir no meio mediático, não com chavões e lugares comuns, mas para afirmar a sua voz, reafirmar o seu poder e reforçar o seu estatuto. Nos termos do artigo 133.º alínea d) da Constituição, o Presidente pode “dirigir mensagens à Assembleia da República”.  De facto, se o Presidente apenas pode “presidir ao Conselho de Ministros, quando o Primeiro-Ministro lho solicitar”, como consta na alínea i) do mesmo artigo, não entendo por que razão o Presidente não pode pressionar o Primeiro-Ministro a estar presente, as vezes que lhe convier. Não entendo. O Presidente deve escrutinar todas as políticas públicas. Não o fazendo, desacredita ainda mais um regime político decrépito.

Não obstante o Primeiro-Ministro assumir-se como a figura central do regime, sobretudo a partir da revisão constitucional de 1982, os Portugueses podem e devem exigir, através do seu voto, um Presidente a quem podem confiar a defesa dos seus interesses e dos seus anseios. Em 2016, votaram cerca de 48,6% dos eleitores. Em 2011, cerca de 46,52%. Portanto, mais de metade dos Portugueses abdicou do seu direito de escolha do principal representante da Nação.

Não concordo em absoluto com a análise de muitos comentadores e constitucionalistas sobre a função presidencial. Por exemplo, existem constitucionalistas como o Prof. Vital Moreira que considera que o atual Presidente “extrapolou os seus poderes constitucionais no caso do SEF” e teve uma atitude que traduz “um padrão de conduta presidencial, forçando os seus poderes constitucionais, em favor de uma espécie de tutela política sobre o Governo, o que não pode deixar de ser motivo de funda preocupação”; conforme afirmou no seu blogue Causa Nossa e foi reproduzido no jornal “I” no passado dia 17 de dezembro. Vital Moreira é um exemplo da visão legalista, positivista, logo redutora, da Constituição. Esta narrativa constitucional interessa a todos aqueles que, como o prof. Vital Moreira, defendem que o Presidente deve manter uma neutralidade político-partidária e uma prudente distância política. Para alguns que pretendem ser os donos e senhores da Constituição da República não cabe ao Presidente tomar posição, mas manter um equilíbrio de poderes feito apenas de aparência, mesmo quando este equilíbrio cheire a esturro. Verifico que o Presidente, apesar de ter uma voz sufragada por todos os cidadãos portugueses eleitores, teve uma prática reiterada de cedência aos interesses do Estado socialista.

Não obstante a função governativa caber exclusivamente ao Governo e este não depender da confiança política do Presidente da República, enfatizo que o Chefe de Estado nunca deveria ter abdicado do seu poder geral de supervisão do funcionamento do sistema político nem da sua função de contrapeso do sistema.

Infelizmente para Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa não exerceu o seu cargo como lhe competia.  A próxima eleição presidencial será crucial para os Portugueses reagirem.