Quando nomeias
mais do que é preciso
O povo é que paga
O povo é que paga
Deixó pagar, deixó pagar
Se o César está a gostar

E quando pensava que já tinha visto tudo… eis que nem os mortos escapam!

Parece que, segundo o que veio a lume, a socialista Câmara Municipal de Lisboa se prepara para assinar um protocolo que atribui à Associação dos Amigos dos Cemitérios de Lisboa (sim, leram bem!…) poderes para “dinamização de iniciativas nos cemitérios da capital (exposições, concertos, roteiros, entre outras), gerir o Centro Interpretativo do Cemitério dos Prazeres, homenagear personalidades sepultadas na cidade, desenvolver arquivos ou celebrar parcerias com diversas entidades, entre outras competências”. Parece também que esta ilustre associação tem sede no cemitério de Carnide. Mesmo.

Desconheço os montantes envolvidos neste protocolo, mas, conhecendo (i) as habilidades lusas nestas questões (que se terão iniciado com um adiantamento de 10.000 euros antes da assinatura do dito protocolo), (ii) o track-record socialista, (iii) a filiação e ascendência partidárias do edil lisboeta e (iv) a restante composição do executivo camarário, suspeitei imediatamente do pior (depois de parar de rir e me aperceber de que a piada é afinal sobre nós, os sempre pagantes contribuintes).

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Mas logo as suspeitas deram lugar a outro sorriso (mais comedido) e a preocupações sérias – foi só ler a lista dos titulares dos órgãos sociais da predita associação amiga dos defuntos, entre os quais se contam os ilustres Jorge Ferreira, fotógrafo de campanhas do PS; Pedro Almeida, funcionário do PS; Inês César, sobrinha de Carlos César; a sua mãe, Patrocínia Vale César e o seu pai, Horácio Vale César (irmão de Carlos César); João Soares, será esse mesmo (?!); Diogo Leão, deputado do PS; Filipa Brigola, assessora do grupo parlamentar do PS. Estes, ao contrário dos putativos homenageados, estão bem vivos, como se demonstra.

Isto já não é bem um lobby familiar-socialista, como alguém lhe chamou. Isto é um gag humorístico que poucos humoristas congeminariam – Herman José? Monty Python? Ricardo Araújo Pereira? O Inimigo Público? Qual quê… Fernando Medina, Carlos César, António Costa, o Diário da República!

Como António Variações, que plagiei acima, mostrou no seu tempo, a criatividade não tem limites. Pergunto: para quando o financiamento público para a Liga dos Amigos dos Peixinhos de Aquário? Para a Associação dos Protectores das Pedras da Calçada? Para a Fundação Pela Dignidade Da Casca De Cebola? Ou mesmo para a Instituição de Solidariedade Para Com As Pulgas Do Circo?

Esta associação ridícula, que consegue ser simultaneamente humorística e insultuosa (o que é apanágio apenas do pior humor), e a sua ligação à maior autarquia do país, seria capa de jornal e abertura de telejornal em qualquer país civilizado do mundo. Como aconteceu, aliás, com os diversos casos e casinhos (e casamentos) associados ao neo-nepotismo grassante em Portugal – até o New York Times dava nota de espanto, há umas semanas, pelo facto de o primeiro-ministro de Portugal dizer que “keeping jobs in party’s family is not a worry”. Chega a ser comovente esta propensão para a sinceridade quando membros do Governo são apanhados a falar “lá fora”, que ninguém os ouve…

Mas cá, tirando uma ou duas notícias, reinou o silêncio do costume – comprometido, dependente, cúmplice, clientelar.

Pouco importa que o Governo e as suas autarquias andem a espalhar dinheiro por todo o lado (leia-se – entre amigos e familiares) e a proclamar que a carteira não chega para os professores; pouco interessa que a “Família” se aproprie de tudo o que consegue enquanto as infraestruturas públicas se vão transformando em sucata; já não conta que a “ética republicana”, por magra que fosse, tenha sido definitivamente enterrada.

Mesmo enterrando dinheiro em cemitérios stricto sensu, a vida de António Costa é um passeio no parque (“a walk in the park”, como ele a descreveria certamente ao Washington Post ou ao Guardian).

Quem perde a vergonha desta forma, só o faz porque está convencido da sua impunidade absoluta. Da ausência total de escrutínio. Do fim dos checks and balances que as democracias mais evoluídas sempre têm e onde a imprensa desempenha papel primordial. Trata-se, no fundo, de Variações do António sobre o mesmo tema, o tema do costume.

Carlos César tem razão numa coisa: o sobressalto cívico é fortíssimo. Mas o assalto cívico não é mais pequeno. E o saque pode ser feito a eito, às claras e sem limites.

Se a César o que é de César, então tudo a César!