Esta terça-feira, foi subitamente notícia o esfaqueamento de seis alunos numa escola da Azambuja. Se, em quaisquer circunstâncias, um acontecimento destes já mereceria alarme público, o facto de o agressor ser um aluno de 12 anos, com um colete à prova de bala, desperta choque e perplexidade. Ter tudo acontecido no primeiro dia de aulas só nos consterna.

Apesar do drama dos incêndios preencher, há dois dias, todos os serviços noticiosos, só um assunto trágico de uma proporção destas seria motivo para que todos os órgãos de comunicação social se virassem, abruptamente, para ele e o tentassem entender.

Não é verdade que as escolas sejam um barril de pólvora. E, muito menos, que isso se deva ao facto de todas as escolas serem, cada vez mais, multiculturais. Quanto mais uma escola é plural mais escola ela se torna. E mais desafia a que crianças e adolescentes a transformem numa oportunidade única de encontrarem nela oportunidades para conjugar a singularidade de cada um com a necessidade de se encontrarem espaços transversais de aprendizagem que melhor conjuguem o privilégio de todos aprenderem com todos. De formas diferentes. A velocidades distintas. E com referências desiguais.

Quanto mais abertas e plurais elas são, mais as escolas acolhem crianças que, para além de tudo o resto que as distingue, trazem para as aulas e para o recreio tudo o que faz parte delas. Educação. Cultura. História(s). Saúde mental, claro. E tudo aquilo que está desarrumado dentro delas.

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É claro que, sempre que pensamos em crianças e adolescentes, custa-nos imaginar que eles não possam senão estar bem. Que não sejam felizes. Que não possam deixar de ser senão saudáveis. É verdade que muitas mães sinalizam a baixa de auto-estima de muitos deles (por mais que nem reparemos na forma como lhes exigimos, exigimos e exigimos bons resultados). As crises ansiosas (que, num mundo que leva o controle ao absurdo, são transformadas em episódios de pânico). Os problemas de hiperactividade e de atenção (mesmo quando eles trabalham 12 horas por dia, pelo menos, 5 dias por semana, e vivam num stress incompatível com a infância e com a saúde mental). Os episódios depressivos (tantas vezes sobrevalorizados, como se eles não pudessem estar tristes; e tantas vezes desvalorizados, como se, também eles, não sentissem as suas vidas, por vezes, como tempestades perfeitas e com o seu mundo, quase todo ele, ao contrário). E, claro, as crises da adolescência. Como se fossem “uma fase” ou “a idade da parvoíce” que, com o tempo, logo passasse.

No entanto, por mais que as crianças e os adolescentes estejam a crescer, é obvio que, por força de muitos acontecimentos de vida que concorrem uns com os outros, há vícios de forma e enviesamentos no seu crescimento que, primeiro, começam por ser acidentais. Depois, vão-se instalando e, quase sem darmos conta, vamo-nos adequando a eles. Para que, depois, pareçam “defeitos de fabrico”. A ponto de evoluírem para distúrbios mais ou menos instalados. Mais tarde, para perturbações de personalidade. E, a seguir, para quadros clínicos mais “calcificados”.

Onde tudo, por vezes, se complica para as pessoas menos treinadas para desenharem um diagnóstico, é que estas crianças em sofrimento continuam, por exemplo, a ter bons resultados escolares. O que, aos olhos dos pais, sugere que eles pareçam ter “as suas coisas” mas, ainda assim, estejam bem. Acresce que, exactamente como os adultos, as crianças e os adolescentes se refugiam no trabalho e tentam encontrar nele formas de se compensarem de tudo o resto que acaba por estar mal na vida delas. Por vezes, quanto mais estão a explodir por dentro ou num sofrimento agudo melhores resultados escolares têm. Se bem que esse esticar de corda seja temporário e não dure para sempre.

A escola, por outro lado, quer por aquilo que lhes pede como, também, por tudo a que os expõe, “estica-os”, ainda, sempre mais um bocadinho. E por mais que estejamos todos muito virados para o sucesso das crianças e dos adolescentes, vamos esquecendo que todas as crianças têm necessidades educativas especiais. Se, nalgumas, essas necessidades se centram na matemática ou no português, noutras elas relacionam-se com a sociabilidade, com a incapacidade de se zangarem ou de andarem à bulha, com lealdade e com maneiras. Ou, simplesmente, com a capacidade de falarem. Daquilo que sentem. Do que imaginam. Dos medos que as perseguem. Ou dos fantasmas com que lutam.

Obviamente que as crianças em sofrimento ou um bocadinho doentes de um ponto de vista psicológico na escola são muitas mais do que todos desejaríamos.

Não se trata, todavia, de pôr cada criança em seguimento psicológico. O que, de uma forma pouco criteriosa, é só um absurdo. Mas delas serem sinalizadas com sensatez. Serem avaliadas, unicamente, se for necessário. Os seus pais e os seus professores serem ajudados a ter as “passwords” para lidar com elas. E, só nos casos expressamente recomendáveis, a serem acompanhadas. Com conta. Peso. E medida.

É claro que quando uma escola com 2000 alunos tem, por exemplo, um ou dois psicólogos, é caso para dizer que, contra a vontade de todos, o populismo chegou às escolas.

Como se compreende, uma criança não passa, de um dia para o outro, de miúdo sensato e equilibrado a adolescente com um humor digno de uma montanha russa. A cismar. A embotar aquilo que sente. Ou a transformar em perturbações de comportamento tudo aquilo que esteja fora do lugar dentro de si.

É claro que os pais e as famílias contribuem muito para todas estas coisas fora do lugar dentro das crianças e dos adolescentes. Por mais que tudo se passe de uma forma tão acelerada que os pais mal sinalizam as dificuldades educativos que encontram nos seus filhos como mal encontram as ajudas que revertam tudo aquilo que esteja fora do lugar dentro deles.

E é claro que as escolas, porque os professores são sensíveis e experimentados, sentem, entre os seus alunos, quem não está bem. Mas porque o sistema espera que os professores sejam, por vezes, mais burocratas da educação do que pessoas muito presentes na vida dos seus alunos, acabam por sinalizar, sobretudo, os alunos que perturbam as aulas ou aqueles que, pelo seu comportamento mais exuberante, põem problemas desafiantes à escola. Os bons alunos, os alunos calados ou os alunos muito metidos consigo, por exemplo, raramente merecem um olhar mais cuidado.

Depois da pandemia, passámos a falar muito de saúde mental. Mas as nossas atitudes em relação às crianças e aos adolescentes, leva-a pouco em consideração. Doutra forma, eles teriam, pelo menos, tempo para serem crianças e tempo para serem adolescentes. O que mal acontece.

Finalmente, chegamos a um episódio como o desta terça-feira. Que preocupa imenso! Pelas vítimas, claro, que têm neste episódio um traumatismo, para sempre. Pela atmosfera de insegurança que traz às escolas e que pode, nalguns casos, fazer com que se escorregue para atitudes um bocadinho paranóides e de exclusão. Para os pais, que passam a estar numa atitude de alarme, ao mais pequeno pormenor. Para os outro adolescentes “presos por arames”, que podem encontrar nesta exposição mediática maciça o “empurrãozinho” para passarem da violência que confabulam à forma como a traduzem em actos. E para este adolescente de 12 anos, que irá ser sinalizado por uma quantidade de serviços que, antes, não foram chamados a intervir e não actuaram de forma a protegê-lo. Que irá ser socialmente exposto e estigmatizado. E se arrisca a ser alvo a inúmeras avaliações (com julgamentos mediático, incluídos) que, no final, podem não o proteger. Não o auxiliar. Nem fazer com que ele e a sua família revertam todo este percurso que levou por diante (e todos os sinais que deu) até ao dia de hoje.

Da mesma forma como as escolas são, muitas vezes, omissas a gerir os diversos formatos de bullying — que se passam nos recreios, nas salas de aula e nas redes sociais — não encontrem, por favor, no bullying a única justificação para alguns comportamentos violentos de algumas vítimas. Como o que agora terá sucedido. Bullying é violência. É inadmissível e é intolerável. Dentro e fora da escola. Seja ela física ou psicológica. Mas é gravíssimo que não haja protocolos de intervenção em relação ao bullying para que as escolas cumpram a sua missão sem distracções. E não há! Mas, como se compreende, por mais que uma criança seja exposta ao bullying haverá outros aspectos que, no limite, a poderão levar a ter comportamentos de uma enorme violência como o desta terça-feira. Seja como for, mesmo que por distracção, o bullying em contexto escolar é, no mínimo, um exercício grave de negligência que compromete toda a escola.

Todas as crianças perigosas, porque são crianças, são (também) crianças em perigo. Ou seja, compreendermos os motivos remotos que tenham contribuído para que este adolescente tenha cometido um acto como este, não significa que condescendamos com o que fez. Evidentemente que o seu acto merecerá uma intervenção judicial. Que tem de ser clara, incisiva e justa. Mas que não pode deixar de existir. Com as consequências que daí venham a resultar.

Só um adolescente circunstancialmente muito perturbado e muito desesperado pode ter tanto ódio por quem está bem e sente como diferente de si comete um acto destes. Mas um acto de absoluta gravidade como este não nos deve impedir de perceber que ele continua a ser uma criança. Que não será justo que, a pretexto do que aconteceu, se passe a falar da diminuição da idade para que seja considerada a imputabilidade destes actos. Ou se fuja para outras considerações que não protejam o sofrimento das vítimas. E a sua inequívoca privacidade. E que ignorem que este adolescente precisa de ser protegido de si mesmo. Da mesma forma como a sua família precisará de ser ajudada. Mas, igualmente como as vítimas, também ele precisará de ser protegido de uma curiosidade mediática que o exponha a exercícios de violência que, sobre tudo aquilo que ele foi sofrendo até chegar ao dia de hoje, pior lhe farão.

Tenho esperança de que um episódio trágico como este não seja um incentivo para que alguns falem, demagogicamente, da violência dos adolescentes. Depois da forma como se banalizou, tristemente, a expressão “as crianças são muito cruéis umas para as outras”. Por vezes, fazemos por não reparar que estes miúdos todos têm pais, famílias e escolas. E que aquilo que lhes atribuímos reitera o “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”. A agressividade e violência não se educam só com educação cívica. Mas com bons exemplos. Não tanto com bons conselhos.

As crianças são boas! Nascem boas! E crescem querendo ser boas. Quando as crianças são más é urgente que, como pessoas crescidas, tenhamos a humildade de perceber onde teremos contribuído, mesmo sem dar por isso, para a sua maldade. E perceber que ela representa — sempre! — um apelo ao apego que, de decepção em decepção, se foi perdendo.

Um episódio tristíssimo como o desta terça-feira, bem gerido, pode evitar outros. Menos violentos. Menos perigosos. Mas, igualmente, fruto de muito desespero. Pode ser uma oportunidade preciosa para que a imprensa não escorregue para uma deriva tablóide. Uma oportunidade para mostrar que somos um estado de direito, longe do populismo, que efectivamente protege as crianças. Antes e depois daquilo que façam de mal. E para assumirmos que, num mundo que banaliza tantas vezes a maldade, somos amigos da humanidade. E do futuro.