Que desilusão. Agora é que é: estamos mesmo, mesmo, mesmo quase condenados. Depois do falhanço da COP26, a humanidade já só tem 2 anos, 9 meses e 18 dias para evitar a sua extinção daqui a 17 anos, 4 meses e 23 dias – fiz a média entre todas as previsões catastrofistas e deu-me isto.

Quando tudo se encaminhava para um compromisso aceitável, chega a Índia e escangalha tudo. O texto final ia referir a “eliminação progressiva” do uso de carvão e a Índia obrigou a que substituísse essa expressão por “diminuição progressiva”. Razão tinham os activistas que organizaram a cimeira paralela à COP, a Co-COP. Acertaram quando disseram que isto não ia dar em nada. Ah, fosse o nosso representante em Glasgow um Afonso de Albuquerque e metia os indianos no seu lugar! Infelizmente, era apenas um Matos Fernandes. Os indianos não têm medo do Matos Fernandes. Quando muito, do motorista do Matos Fernandes, quando anda na bisga em estradas nacionais.

Ao que parece, a birra deveu-se ao facto de a Índia gerar a maior parte da electricidade a partir do carvão e não querer acabar com isso antes que toda a sua população tenha acesso à rede eléctrica – neste momento, faltam ainda alguns 200 ou 300 milhões. Confio que o plano seja então continuar com carvão, deixar os indianos terem a capacidade de manter um frigorífico e televisão a funcionar, verem que é giro, e nessa altura desligar tudo. Quando se diz a um indiano que um dia vai ter electricidade, tenho esperança que seja isso mesmo: um dia. Só. Depois, regressa a escuridão.

Isto é ainda mais frustrante porque toda a gente sabe que os indianos não têm necessidade nenhuma de electricidade. Na Índia, por causa da sabedoria milenar do hinduísmo, abunda a iluminação interior. Usem isso para ler à noite. Mas, se querem mesmo ter electricidade, então não precisam de queimar carvão. A Índia tem imenso vento. Sempre que vejo stories no instagram de pessoas em retiros de ioga, há sempre uma brisa agradável que faz esvoaçar cabelos, quando estão a fazer a saudação ao sol (essa é outra, também têm sol!). Basta montar umas ventoinhas e uns painéis e está feita a festa.

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A situação é dramática, precisamos agir. Noutras ocasiões, a humanidade foi capaz de tomar atitudes drásticas para combater alterações climáticas por si causadas. É repetir. Há 4 mil anos, por sua culpa, o Egipto foi confrontado por uma grave calamidade climática que incluiu horríveis tempestades de granizo, poluição no Nilo, nevoeiro cerrado que encobriu o Sol por três dias e mortandade, nomeadamente de carneirinhos e primogénitos. Só passou quando o Faraó concordou em realizar a transição energética, deixando de usar a energia gerada por judeus. Infelizmente, “deixar partir o Povo de Deus para travessia do deserto” não é uma solução que possamos utilizar agora. Primeiro, teríamos de o prender. E basta ver as notícias para perceber que os israelitas não são para brincadeiras.

Houve outras alturas em que também actuámos em defesa do clima. Apresento aqui dois exemplos, retirados do livro “A Pequena Idade do Gelo”, do arqueólogo Brian Fagan, sobre as mudanças climáticas ocorridas durante o período de arrefecimento, entre os séculos XIV e XIX.

Em meados do séc. XVII, numa pequena localidade alpina ameaçada pelos avanços de um glaciar (imagine-se que houve épocas em que os glaciares, em vez de recuarem, avançavam!), os aldeões organizaram-se para parar aquela alteração climática. «Em 1653, os alarmados habitantes de Naters enviaram uma delegação à comunidade jesuíta de Siders com um pedido de ajuda, afirmando estar prontos para fazer penitência e praticar outras “boas obras cristãs”. Os padres Charpentier e Thomas passaram uma semana a pregar em Naters, liderando depois uma procissão até ao glaciar, a quatro horas de marcha. O povo lá foi, com grande dificuldade, cabeças descobertas à chuva, a cantar salmos e hinos durante todo o caminho. Chegados ao local, os jesuítas celebraram uma missa e pregaram um sermão: “Os exorcismos mais importantes foram usados”. Aspergiram o gelo com água benta e instalaram uma efígie de Santo Inácio nas proximidades. “Parecia uma imagem de Júpiter, ordenando um armistício não às suas tropas vencidas, mas ao próprio glaciar faminto”. A argumentação jesuíta surtiu efeito. Segundo se dizia, Santo Inácio “fez o glaciar aquietar-se”.»

Nem só com rezas se serenava o clima. Por vezes era necessária uma mitigação mais musculada: «A ortodoxia luterana afirmava que a nevasca fria e intensa que atingiu Leipzig em 1562 era um sinal da ira de Deus perante o pecado humano, mas a resistência da Igreja às acusações de bruxaria começou a vacilar quando as alterações climáticas causaram más colheitas, falta de comida e doenças no gado. 63 mulheres foram queimadas como bruxas na pequena cidade de Wiesensteig, na Alemanha, em 1563, numa época de aceso debate a respeito da autoridade de Deus sobre o clima.»

Neste momento, nenhuma destas opções é uma solução viável. À Igreja não vale a pena recorrer. Como se tem visto pelo que o Papa diz, o clero já não crê que Deus possa ajudar, acha que o Homem é que manda no clima. E também não se devem queimar bruxas, porque as fogueiras iam aumentar as emissões de CO2 e isso atrasa ainda mais a neutralidade carbónica.

Mas não há dúvida que alguma coisa tem de ser feita. A Terra já aqueceu 1.1°C desde 1880, não podemos deixar que aqueça outro tanto até 2100. Há que agir. Porém, sejamos ambiciosos. Não nos contentemos com parar aqui, estabilizando num aumento de apenas 1.1°C. Melhor do que viver com apenas mais 1.1°C em relação a 1880, é viver com a temperatura de 1880. Se essa é a temperatura que se definiu como a ideal, é essa a temperatura a que devemos almejar.

Para isso, só vejo uma solução. Orientar todo o avanço tecnológico de que dispomos para a construção de uma máquina do tempo que transporte até 1880 um grupo escolhido de boas pessoas com as convicções certas sobre o clima. Assim de repente lembro-me de António Guterres, Leonardo Di Caprio, Greta Thunberg e Al Gore, por exemplo. Lá chegados, cabe-lhes convencer os nossos antepassados a pararem imediatamente de queimar os combustíveis fósseis com que irão iniciar a inaudita era de desenvolvimento humano que lhes permitirá escapar da pobreza. Não será fácil. Não que a causa não seja justa, a audiência é que não vai ser a mais brilhante. Em 1880 os nossos enviados estarão em grande parte a pregar a camponeses iletrados e subnutridos, cansados de jornas intermináveis e de enterrar filhos. É natural que os bons argumentos demorem a entrar naquelas cabecinhas meio lerdas. Mas, se há quem consiga persuadir os avoengos a sacrificarem melhorias na sua condição miserável para que nós, seus descendentes, não nos angustiemos com o clima, é este grupo de elite. Podem ter de lá ficar uns tempos até alcançarem o objectivo, mas de certeza que não se vão importar de viver com o nível de vida de 1880. Afinal, estarão a experimentar o clima ideal pela primeira vez! Sortudos.

É um facto: se estamos nesta situação periclitante, é porque em 1880 os nossos antepassados não eliminaram emissões e optaram antes pelo progresso. Se os tivessem avisado, eu agora não estaria aqui, no meu escritório aquecido por ar condicionado, em frente ao computador, a comer os restos do arroz de pato que mandei vir ontem pela Glovo, guardei no frigorífico e aqueci no micro-ondas, aflito com a situação do mundo que me chega através da internet. Não, antes estaria sereno na minha assoalhada partilhada com outras três famílias, a pensar se não deveria mandar o meu filho aparelhar a carroça para ir buscar lenha para o borralho.

Precisamos de viajar no tempo para tratar do tempo. Em vez de perguntar “que futuro queremos para os nossos netos”, a pergunta correcta é “que passado quereríamos para os nossos avós?”

Normalmente, quando se aborda a hipótese teórica de viajar no tempo, costuma falar-se na possibilidade de viajar até à Alemanha de 1933 para matar Adolf Hitler. A minha sugestão, de ir a 1880, é moralmente superior, uma vez que salva o planeta e, com sorte, ainda mata o bebé Hitler com uma daquelas doenças que dizimavam crianças e que o crescimento económico foi erradicando.

Se, no final do século XIX, tivéssemos abdicado à partida da energia abundante, acessível e barata, não estaríamos nesta situação. Não teríamos carros, aviões, cargueiros e comboios. Nem vacinas. Nem os antibióticos e medicamentos que salvam crianças. Não teríamos fertilizantes sintéticos que alimentam milhões. Não teríamos levado um homem à Lua. Não o teríamos trazido de volta. Não teríamos internet, televisão, cinema ou telemóveis. Não teríamos electrodomésticos. Não teríamos luz a qualquer hora. Não teríamos aquecimento e refrigeração instantâneas.

E ainda bem. Porque é por termos estas coisas que nos reproduzimos em excesso e não morremos tão facilmente, contribuindo para a sobrepopulação do planeta. Egoisticamente, optámos pelo aumento da produção alimentar, pela saúde, pela baixa mortalidade infantil (era 40% em 1880, agora é 3,4%, no mundo inteiro), pela longevidade (esperança de vida era 42 anos em 1880, agora é 72), pela riqueza (o PIB per capita era de 1498 dólares em 1870, em 2016 eram 15.212 dólares) pelo bem-estar de cada vez mais de pessoas. Mas não valeu a pena, pois perdemos a temperatura média perfeita.

Às vezes, quando brinco com os meus filhos no Jardim da Estrela em dias de canícula, penso: “Ó maldita revolução industrial! Quem me dera que nunca tivéssemos feito este caminho de desenvolvimento. Agora, em vez de uns abrasadores 33°C, estariam uns frescos 31.9°C e já não me aborreceria tanto brincar com as crianças. Até porque uma estaria a trabalhar (já tem 10 anos) e a outra teria morrido na infância. Não sem antes matar a mãe no parto”. Penso nisso enquanto como um gelado, outra coisa que, felizmente, não existiria. É uma chatice ter de resistir à deliciosa, porém açucarada, combinação avelã e chocolate belga, que, ao engordar-me, obriga-me a andar mais a pé em vez de levar o carro. Outra opção que, graças a Deus, me seria retirada.

Para que a equipa que vai viajar no tempo se possa habituar às condições de vida que encontrará em 1880, sugiro duas semanas de estágio numa das aldeias indianas que queremos manter sem electricidade. São mais ou menos as mesmas condições de vida.