Carl J. Friedrich, um constitucionalista germano-americano (1901-1984), explicava a questão da legitimidade contando a história de um velho reino e de um velho rei.

Nesse reino lendário, o princípio da legitimidade do poder era um interdito: não se podia fazer guerra em dia de chuva. Por isso, quando o reino foi invadido na estação das chuvas o velho rei reuniu o seu Conselho: o que fazer? Deviam ou não dar batalha aos invasores? As opiniões dividiam-se, mas como se tratava de um reino antigo, o rei ouvia o Conselho mas decidia sozinho. E argumentou assim: o povo acredita em nós, porque acredita que não se pode fazer guerra num dia de chuva; se fizermos guerra num dia de chuva, podemos ganhar ou perder. Se perdermos, o povo vai condenar-nos. Se ganharmos, ganhamos mas o povo deixará de acreditar no princípio em que se baseia o nosso poder, pois quebrámos o mandamento principal da nossa comunidade – não fazer guerra num dia de chuva. Vamos então seguir o princípio e não vamos resistir nem combater em dias de chuva. Sofreremos a ocupação mas o povo continuará a acreditar em nós e um dia o inimigo será forçado a sair pela revolta do povo.

C.J. Friedrich concluía a parábola, dizendo que este rei sabia bem o que era a legitimidade.

Nas sociedades tradicionais o poder era considerado um dom dos deuses ou de Deus. Zeus, Júpiter, Jeová, Alá, Deus-Pai, todos princípio e causa de todas as coisas, tinham determinado, por um especial carisma, que um homem, uma dinastia, uma classe, uma assembleia oligárquica, um Senado, um Conselho dos Dez, mandasse, fizesse leis, executasse os actos necessários à governação. Durante séculos, os melhores e mais sofisticados espíritos da Humanidade, de Platão e Aristóteles a Santo Agostinho e S. Tomás de Aquino, de Nicolau Maquiavel e Jean Bodin a Thomas Hobbes e Bossuet, de Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau a Thomas Paine, de Hegel a Marx, de Lenine a Mussolini, de Heidegger a Hannah Arendt, sem contar com uma infinidade de teólogos, juristas, constitucionalistas e politólogos, discutiram e argumentaram sobre a melhor forma de Governo e de como se legitimava. Ou pela origem, ou pelo exercício, ou pela decisão da maioria, ou pela vontade de vanguardas ou minorias esclarecidas, que se auto-proclamavam supremos intérpretes do povo.

Terminado um violento século XX, em que se confrontaram o comunismo, o fascismo, o nazismo, o liberalismo, a democracia, chegou-se à vitória da democracia liberal e do capitalismo económico. Isto depois de várias guerras localizadas e mundiais, civis e interestaduais, quentes e frias.

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O que está implícito e explícito na democracia liberal é que se aboliram as teorias mais ou menos “religiosas” ou “esclarecidas” do poder – do Absolutismo de Bossuet ao bolchevismo de Lenine – e se puseram de parte dinastias legitimadas pela graça de Deus ou pelos mistérios do sentido da História passando o poder a depender da chamada vontade geral ou da vontade popular maioritária, determinada a partir de uma eleição, por sufrágio secreto e universal.

A ideia democrática contemporânea teve como um dos seus pais o cidadão de Genebra, Jean-Jacques Rousseau. No seu Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, Rousseau entra em polémica com Thomas Hobbes, que descreve o Estado de Natureza como um estado caótico, de guerra de todos contra todos, e o “homem natural” como um ser mau, perverso, lobo dos seus irmãos. Para Rousseau, o homem natural não era assim. O ser egoísta, maléfico, filho de Caim que Hobbes descrevia era o “homem artificial”, feito pelas primeiras artes – a metalurgia e a agricultura –, que teriam trazido a propriedade privada e, logo, a desigualdade entre os que tinham e os que não tinham.

Para Rousseau o homem natural era um ser bom, generoso, preocupado com o seu semelhante e fora a propriedade, com a desigualdade entre ricos e pobres, que gerara o Estado e os governantes para protegerem essa desigualdade; e houvera depois a transformação desses governantes em déspotas e do Estado em máquina de regulação e opressão.

Rousseau, no rasto dos atenienses, acreditava na virtude das democracias, que conformavam a vontade particular à vontade geral. E a vontade geral da comunidade, do corpo social que, em si e por si, através de um processo de razão e bem comum, ditava o melhor para todos e cada um identificava-se com a vontade da maioria quantitativa dos cidadãos.

Esta coincidência entre a vontade geral, apurada por um processo maioritário de vontades particulares, tem o seu quê de misterioso e de religioso. Na verdade, no Contrato Social, Rousseau atribui à vontade geral virtudes extraordinárias, qualidades quase mágicas, convertendo-a num mecanismo representativo da vontade de todos os cidadãos que, em igualdade e em liberdade, lhe conferem um poder soberano infalível, inalienável, indivisível e absoluto. Esta seria a base de legitimidade da democracia moderna, de um governo escolhido pela maioria dos cidadãos de acordo com a lei.

Há críticos, como J. L. Talmon, que explicam como este conceito democrático rousseauniano produziu também aquilo a que se chamou democracia totalitária e que se manifestou, nomeadamente, na Revolução Francesa e na teorização que legitimou o Terror. Tal como nas chamadas democracias populares, que mesmo sem votos nem eleições livres e justas, quiseram representar a “vontade geral” como vontade de um Proletariado que, através da sua “vanguarda histórica partidária”, tinha o direito legítimo de exterminar a Burguesia.

A teorização anglo-americana do liberalismo republicano foi mais cautelosa nestas certezas e procurou, não só legitimar a maioria, como, sobretudo, proteger a minoria.

Mas afastadas estas versões limite da vontade geral, compensadas pela inscrição constitucional dos direitos da minoria, pela existência de uma sociedade civil, de igrejas independentes do Estado, de empresas privadas, o que temos agora para legitimar o poder?

Temos, essencialmente, a decisão maioritária do povo, ou seja, dos eleitores. No fundo, uma “vontade geral” despida das atribuições misteriosas e quase mágicas do pensamento de Rousseau, que – como observou o Prof. Luís Cabral de Moncada há muitas décadas na sua Filosofia do Direito e do Estado – tinha o seu quê de místico e religioso na teorização das coisas terrestres.

Esta teologia democrática foi posta de parte nas nossas sociedades, laicizadas em termos de poder, embora no discurso político e nos entusiasmos eleitorais mais quentes, se continue a usar a linguagem do “povo”, da “vontade do povo”, da “vontade geral” saída do “povo soberano” como qualquer coisa de transcendente. Mas o que se passa e o que torna aceitável o sistema é muito mais simples e prático:

Desaparecidas considerações transcendentes do poder, derrotadas no século passado as experiências totalitárias baseadas numa percepção especial do Bem Comum, aceite o princípio de igualdade dos cidadãos, garantidos contrapoderes institucionais e da sociedade civil, aceita-se que o poder seja disputado e decidido segundo as regras constitucionais que proclamam que o partido, a coligação ou o candidato mais votado em eleições livres e justas formará o governo e comandará a sociedade nos termos e prazos constitucionais definidos.

Ora desde que candidatos, partidos, coligações e movimentos nacionais populares – ou populistas, como lhes chamam os seus concorrentes e os media – começaram a vencer eleições e a ter espaço de legitimidade democrática, esta regra parece ter mudado. Os seus adversários no sistema começam a levantar dúvidas, suspeições, reservas a este princípio da legitimidade do voto popular, quando o povo não vota da maneira certa, isto é, nos candidatos ou partidos “democraticamente correctos”. Então a regra do jogo não deve ser respeitada. Daí as acusações de “democracia iliberal”, a países como a Hungria ou a Polónia; e os pedidos de ilegalização de partidos como a Lega, o Front National ou ilegalização o Chega.

Ora isto é complicado: a partir do momento em que, em nome de conteúdos e prevenções ideológicas, geralmente de uma mesma linha política, se pretende pôr em causa o princípio maioritário, está a pôr-se em causa o único princípio de legitimidade subsistente. Um princípio aritmético, quantitativo, mas que é o que resta como regra do jogo.

E há que ter em conta que nenhum destes partidos acusados de “iliberalismo” tem posto em causa, quer nos seus princípios doutrinários quer na sua prática, a democracia liberal. E nas experiências de governo – seja a presidência Trump, nos Estados Unidos, seja a presidência Bolsonaro, no Brasil, os checks and balances e os equilíbrios institucionais têm vindo a ser mantidos.

Será que, como alternativa à chamada democracia iliberal, se prepara um liberalismo não-democrático, com o regresso de vanguardas especialmente ungidas para interpretar e representar a vontade popular e banir as “opções erradas” do povo?