Desta vez, foi o presidente que começou. Depois, veio o primeiro ministro pegar no mote. Em 2022, querem todos “virar a página”. É uma ideia gasta, e não é só porque sabemos como desde 2015 foi “virada a página da austeridade”: com cativações, cortes do investimento, negligência do SNS, a maior carga fiscal de sempre em 2021. Se a página da pandemia for virada da mesma maneira, bem podemos começar a tentar amar as “restrições”, como o Dr. Strangelove amava a bomba atómica. Talvez uma variante mais benigna e as vacinas domestiquem o vírus. Mas nada disso nos deveria fazer esquecer que Portugal foi um dos países em que proporcionalmente mais gente morreu de Covid-19, em que a economia mais sofreu, em que as ajudas foram menores, e em que a recuperação é menos auspiciosa. Nada disso foi por acaso.

Portugal está há décadas parado na mesma página: uma página de declínio demográfico, económico e institucional.  Somos um país em que o investimento em educação pouco mais tem servido do que para formar a geração dos emigrantes mais qualificados de sempre. Não é um azar. Desde 1995, que Portugal é dominado por um grupo político que não confia na sociedade portuguesa, e que por isso assentou o seu poder no controle da sociedade pelo Estado e na divisão dos portugueses entre as suas clientelas e os outros. Tudo isso teve um custo. Não foi só económico, mas ético e político. Vivemos hoje numa democracia limitada pela ilusões e pelos medos que os donos do poder propagam, para impedirem alternativas: parece nunca faltar dinheiro para mais um subsídio ou para mais uma empresa falida, e quem os critica é fatalmente “radical” e “fascista”.

O que tornou isto possível? Paradoxalmente, foi um suposto “virar de página”. Na década de 1990, houve quem pensasse que o euro iria obrigar o país a reformar-se. Em vez disso, a moeda única serviu para, sob governos socialistas, cobrir os défices que resultaram da expansão das despesas num regime de estagnação económica. Desde 2015, o BCE pareceu garantir esse modo de vida contra qualquer pressão dos mercados de capitais. Quem tem força para virar esta página? A oposição, nos últimos anos, desistiu. Desistiu a extrema-esquerda, que se sujeitou ao PS e se conformou com estas eleições como quem, entre guardas, sobe ao patíbulo. Desistiu o PSD, que sob Rui Rio se fez de “centro esquerda” para casar com o PS, e desistiu a anterior direcção do CDS, que tentou ser tudo para toda a gente, até Francisco Rodrigues dos Santos corrigir a trajectória. E começaram logo também a desistir a Iniciativa Liberal, que não é de esquerda nem de direita, e o Chega, que tem o cuidado de atacar todos indiscriminadamente. À direita, a multiplicação dos partidos pôs todos, por questões de comércio eleitoral, a tricotar “linhas vermelhas” entre si. Qualquer perspectiva de alternância se perdeu nesses trabalhos manuais.

A política, em Portugal, parece ter deixado de ser capaz de virar as páginas que importam. Viram os debates? Num país em decadência, a grande discussão esta semana foi sobre a pena de prisão perpétua. Porquê essa farsa? Porque ao PS importa fingir que é o socialismo, ou a barbárie. De resto, todos parecem muito satisfeitos por vencer Ventura: “não passará”, proclamou Costa, em modo de Pasionaria. É fácil, com quase todos os comentadores mais assustados pela ideia de parecerem fascistas do que ridículos. Até a Rui Tavares deram uma vitória. Virar páginas, num ambiente destes? Devem estar a brincar. Esperemos pela inflação na Alemanha. Chegou a 5% em Dezembro. É a taxa mais alta desde a década de 1990. Talvez isso vire mesmo alguma página.

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