O Médio Oriente está na prateleira dos problemas das chancelarias ocidentais desde o fim da I Guerra Mundial, quando o império otomano foi esquartejado pela Inglaterra e pela França. Na década de 1970, chegou a ser um dos palcos mais quentes da Guerra Fria. Mas só em 2003, com a deposição de Saddam e a ocupação do Iraque pelos EUA, polarizou o público ocidental. Antes da crise do sub-prime, o Médio Oriente foi o recanto onde, durante uns tempos, procurámos motivos para nos sobressaltar e irritar uns contra os outros.
Não é costume uma questão externa dividir opiniões desta maneira. Nos EUA, só o Vietname teve esse efeito. Desde então, porém, tudo se tornou menos claro. Da invasão de Bush, a sabedoria política deduziu o inconveniente de tentar exportar instituições e valores. Obama, na Síria, absteve-se muito prudentemente. Acontece que o realismo gerou na Síria um caos tão sanguinário como o idealismo no Iraque.
Agora, o fracasso de Obama e o fracasso de Bush deram as mãos, e as guerras do Iraque e da Síria são uma só. Este mês, no Iraque, o exército nacional inclusivo que os EUA tentaram fundar e treinar dissolveu-se, como tinha acontecido ao exército nacional sírio em 2011. Hoje, o governo sírio depende de milícias xiitas armadas pelo Irão e a oposição mobiliza milícias sunitas financiadas pela Arábia Saudita. O mesmo, como é óbvio, sucederá no Iraque. Em ditadura ou em democracia, só o sectarismo dá alicerces ao poder no Médio Oriente. Entretanto, os EUA circulam num labirinto imprevisto: na Síria, acarinham uma subversão sunita contra um governo xiita pró-iraniano; no Iraque, sustentam um governo xiita pró-iraniano contra uma subversão sunita. Perante tudo isto, o público ocidental oscila entre a repugnância e o tédio. Apesar dos artigos de Tony Blair, já não nos apetece dividir-nos por causa do Iraque. Não queremos saber.
O mundo já não se presta, como outrora, à projecção simples das nossas diferenças de opinião. Com quem alinhar no Médio Oriente? Com os tiranias militares, ou com as teocracias anti-feministas? E que fazer? Construir democracias, como Bush? Ou retirar, mas matando à distância inimigos selecionados, como Obama?
O Médio Oriente justificava a sua relevância por causa de Israel, do petróleo ou do terrorismo. Mas Israel não tem inimigos militares à altura desde 1973, devaneios de autonomia energética permitiram a muitos esquecer o petróleo árabe, e o jihadismo no Ocidente parece refreado pela crueza com que os governos ocidentais vigiam, capturam e assassinam. O endividamento e o envelhecimento das sociedades ocidentais aconselham também a retracção. Estamos a desistir do papel de Atlas.
Como será agora? Vamos deixar o mundo “regionalizar-se”, isto é, reduzir-se a correlações de forças locais, mais ou menos remotas e incompreensíveis? Se o Ocidente optar pela indiferença, poupar-se-á a muitos custos, mas não a todos. Não vou falar de mercados, matérias-primas e segurança, mas de outra coisa: da universalidade dos nossos valores e princípios. A universalidade foi sempre o ponto de vista a partir do qual, no Ocidente, concebemos os fundamentos da nossa civilização. O alheamento que a complexidade do mundo agora nos inspira obrigar-nos-á a abordar a ética e a política de outra maneira. Não subestimemos as consequências.
O intervencionismo humanitário tinha sem dúvida as suas perversões. Mas supunha um sentido comum da humanidade, que a actual tendência isolacionista ocidental pode comprometer. Que se lixe o Iraque? De uma maneira ou de outra, também uma parte de nós se lixará sempre no Iraque.