A aplicação dos artigos 285.º a 287.º do Código do Trabalho, concebidos inicialmente para regular situações de venda, cessão ou fusão de empresas, tem-se revelado profundamente problemática desde que, em 2019, a sua aplicação foi estendida à contratação pública no âmbito da prestação de serviços. Estes artigos baseiam-se no conceito de “unidade económica”, uma noção originalmente projetada para contextos empresariais que diferem significativamente das dinâmicas da contratação pública, especialmente em setores como o da segurança privada.
Enquanto noutros setores as disposições legais são aplicadas com relativa harmonia, fruto da conduta ética das partes envolvidas, na segurança privada tem-se assistido a abusos reiterados. Empresas têm usado esta legislação para transferir encargos financeiros de forma desproporcional, o que resulta, na prática, em graves prejuízos para os trabalhadores. Vigilantes, em particular, são frequentemente privados de subsídios de férias e de Natal que deveriam ser assegurados pela empresa transmitente.
A lacuna legislativa persiste há mais de cinco anos, evidenciando a inércia legislativa da Assembleia da República. Embora a introdução da alínea 10 ao artigo 285.º visasse aclarar aspetos críticos, subsiste incerteza quanto à definição de “unidade económica” e quanto à responsabilização solidária pelas obrigações laborais vencidas. A recente transferência de cerca de 500 vigilantes no Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS) exemplifica o impacto desta indefinição: mais uma vez, trabalhadores enfrentam a possibilidade de não receber os subsídios de Natal, num total que supera meio milhão de euros.
Esta situação é manifestamente inadmissível. A legislação, como atualmente redigida, permite imputar encargos à empresa adquirente que, ao assumir o contrato a 1 de dezembro, não beneficia de qualquer proveito do contrato anterior. Tal desequilíbrio ignora que os lucros obtidos durante a vigência do contrato anterior deveriam ser alocados pela empresa transmitente ao cumprimento das suas obrigações laborais, e não transferidos de forma injusta para a adquirente. Este cenário resulta num sistema desequilibrado que beneficia a transmitente enquanto penaliza simultaneamente a adquirente e, mais gravemente, os trabalhadores.
Questões pendentes e impacto no setor
A ausência de intervenção política é particularmente alarmante. A cada novo caso, dezenas de trabalhadores são prejudicados, e o setor da segurança privada é mergulhado numa crise de instabilidade que compromete a sua sustentabilidade. A confiança no regime jurídico aplicável à contratação pública está em risco, colocando também em causa a credibilidade do Estado enquanto contratante responsável.
Propostas de intervenção legislativa
É imperativo que a Assembleia da República empreenda uma revisão profunda dos artigos 285.º a 287.º do Código do Trabalho, adaptando-os às especificidades da contratação pública. Entre as medidas urgentes estão:
Clarificação do conceito de unidade económica no contexto da contratação pública, de forma a evitar interpretações abusivas e a proteger os direitos dos trabalhadores.
Introdução de mecanismos robustos de fiscalização e responsabilização que garantam que as obrigações laborais são integralmente cumpridas pela empresa transmitente antes da transmissão de estabelecimento.
Implementação de regras claras sobre a alocação de responsabilidades financeiras, assegurando que a empresa adquirente não é onerada com encargos alheios aos benefícios auferidos no decurso do contrato.
Conclusão
A revisão legislativa não é apenas uma questão de justiça laboral; trata-se de assegurar a estabilidade e previsibilidade na contratação pública, pilares essenciais para a sustentabilidade do setor da segurança privada e para a confiança nas relações contratuais do Estado. Até que medidas concretas sejam tomadas, a má aplicação destes artigos continuará a fomentar desigualdades e a perpetuar um sistema que beneficia injustamente os menos responsáveis.
A inércia política não pode prevalecer. É tempo de agir.