Desde há uns anos, os debates sobre a cultura de cancelamento são ubíquos, mas também profundamente estéreis. É possível prever qual será o conteúdo de um texto sobre cultura de cancelamento com quase completa exactidão sabendo a identidade do autor e a sua ideologia política. Isto é de um aborrecimento atroz.

Em termos genéricos, este novo significado para a palavra “cancelamento” (que já foi, de resto, adicionado em múltiplos dicionários prestigiados da língua inglesa) pretende descrever o fenómeno em que uma multidão de pessoas reage de forma negativa a uma declaração (ou acção) que considera moralmente condenável, pretendendo com isso que o autor da declaração sofra repercussões negativas, que podem ir da reprovação social generalizada, à ostracização ou, nos casos mais graves, ao seu despedimento ou exclusão das actividades económicas e grupos sociais em que participa. Este artigo de Ross Douthat, cronista conservador residente do New York Times, parece-me equilibrado ao explicar bem os básicos do fenómeno e a colocar alguns pontos nos is (embora eu não concorde necessariamente com tudo).

Não há dúvida que o conceito parece ter surgido para descrever situações em que pessoas ou grupos de esquerda cancelavam pessoas que proferiam declarações que estes consideravam racistas, xenófobas, sexistas, transfóbicas, homofóbicas, ou insultuosas para grupos marginalizados. Ou seja, estes grupos de esquerda queriam usar o cancelamento do discurso para corrigir as injustiças sociais que eles consideram inaceitáveis. Independentemente da sua desejabilidade, a eficácia da táctica parece-me ser muito discutível.

A dificuldade da cultura de cancelamento – salvo nas raras excepções em que efectivamente há uma decisão por parte de uma empresa ou liderança para despedir alguém – é que todos aqueles que nela participam estão apenas a exercer a sua própria liberdade de expressão. Todos temos o direito de falar e todos temos o direito de criticar. O problema é que, em conjunto, as decisões individuais de crítica violenta podem gerar um fenómeno colectivo desproporcional. Parece-me também evidente que ninguém “controla” o nível de proporcionalidade da multidão: não é um objecto deliberado por uma única entidade ou grupo de pessoas responsável, mas sim um resultado cumulativo do comportamento individual de milhares ou milhões de pessoas.

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Entretanto, como muitos outros conceitos que se popularizam no discurso comum, o conceito de “cultura de cancelamento” parece ser altamente maleável e poroso: cada um utiliza o conceito para descrever reacções negativas e críticas que o próprio (ou o seu lado) obtém, mesmo que estas não tenham qualquer consequência significativa para o emprego ou a sua vida familiar e social. Ora, isso não é cancelamento: é simplesmente debate público, que se quer vivo. Outra coisa que não é propriamente cancelamento é a nossa própria autocensura. Sempre houve autocensura ao longo da história. Esta faz parte dos mecanismos sociais milenares de controlo social, em conjunto com a reputação, a vergonha e a ostracização social. Sim, falar requer o mínimo de coragem e ir contra a maré também. No entanto, e simultaneamente, também é verdade que os níveis de tolerância deveriam aumentar na nossa sociedade. Quando digo tolerância, refiro-me à tolerância para ouvir o que não gostamos, não queremos e não concordamos. Aliás, importa relembrar que os filósofos contemporâneos que analisam a tolerância enfatizam que esta precisa de um elemento negativo: só toleramos um discurso ou uma pessoa se não gostarmos deles. Não se tolera aquilo de que já se gosta.

Após o surgimento da cultura de cancelamento associada à esquerda, grande parte da direita vangloriou-se e vangloria-se de ser a verdadeira defensora da liberdade de expressão. Mas será que isto é verdade? O verdadeiro teste vem nos momentos em que somos confrontados com discurso que não gostamos e temos poder para cancelar. Elon Musk, após comprar o Twitter, já suspendeu várias contas de jornalistas que o criticavam. Recentemente, o Washington Post decidiu não publicar um cartoon, desenhado por uma cartoonista do próprio jornal (vencedora do prestigiado prémio Pulitzer e empregada no jornal há mais de 15 anos), uma vez que este criticava a posição subserviente que o seu dono, Jeff Bezos, e outros magnatas da tecnologia tinham perante Donald Trump, na visão da cartoonista. A cartoonista demitiu-se do jornal após o “cancelamento”. O popular Governador da Florida, Ron DeSantis, já implementou inúmeras leis a limitar de forma desproporcional que manuais as escolas podem usar, que cadeiras os professores universitários podem leccionar, que livros que as bibliotecas públicas não podem ter no seu catálogo, que História os professores podem ensinar. Sejamos sérios: todos os estados e países têm standards educativos, nomeadamente científicos e profissionais, para o que se deve ensinar nas escolas. No entanto, DeSantis foi claramente desproporcional ao banir centenas de livros e manuais perfeitamente dentro dos limites sensatos do discurso público. Não me parece ser uma acção de alguém que realmente valorize o famoso mercado livre das ideias, a liberdade de pensamento e o confronto de perspectivas alternativas no espaço público.

No final das contas muito pouca gente gosta realmente da liberdade. A maioria não gosta verdadeiramente dela, nem à esquerda nem à direita. A liberdade é antitética à nossa natureza humana mais primitiva que deseja autoprotecção, protecção do nosso modo de viver, da nossa família e tribo, de quem nos é mais próximo e da nossa segurança material e social. Ela pode ser também antitética ao nosso desejo de domínio: ninguém quer que o seu lado perca e ninguém gosta de se sentir ameaçado. A liberdade é uma conquista racionalista e profundamente filosófica contra esses desejos primitivos.

Ambos os lados querem, portanto, ser eles a definir os limites da liberdade de expressão e tentam fazê-lo com os recursos e poder a que têm acesso. Para isso, autoproclamam-se como os verdadeiros defensores da liberdade de expressão, contra as limitações que o outro lado quer impor. Na verdade, o que todos querem é moldar o discurso público porque todos percebem o poder das ideias e narrativas. Essa é, aliás, uma das maravilhosas ironias do mundo da tecnologia: são os próprios bilionários ao volante das grandes empresas tecnológicas que percebem como ninguém a importância e o poder de moldar as ideias e narrativas que circulam nas sociedades, e daí que comprem jornais e redes sociais.