A ideia que aqui levantei – e não fui o único – acerca da eventulidade de um «governo de iniciativa presidencial» foi comentada por grande número de pessoas e rejeitada por algumas com o motivo de o actual Presidente da República (PR) não estar disponível, segundo elas, para dar tamanho pontapé na gramática partidária… À medida, porém, que o tempo passa, continuam a chegar às primeiras páginas dos jornais vários sinais que fazem pensar o contrário.

Com efeito, o primeiro sinal que desencadeou a minha especulação foi a inesperada intervenção pessoal do PR no sentido de promover nos Açores um novo governo encabeçado pelo PSD, o qual tivera menos votos do que o PS mas, em compensação, obteve o público apoio de dois deputados eleitos pelo «Chega». O 1.º ministro e o PS engoliram em seco a perda dos Açores após 24 anos seguidos de domínio. Foi a resposta directa do PR àquilo que António Costa fizera em 2015, criando a «geringonça» sem qualquer advertência prévia e sobrepondo-se, assim, à vitória da aliança PSD+CDS conferida pela prática parlamentar desde 1976. Enquanto o PS fizera entrar a extrema-esquerda (PCP+BE) no jogo parlamentar, o PR fez entrar a chamada extrema-direita, no caso os Liberais e o Chega, que se juntaram ao PSD e ao CDS para derrotar o socialismo açoreano!

O segundo sinal passou mais despercebido. Contudo, não se podem desprezar as intenções políticas do PR a frisar o «populismo de direita», ao tornar público um relatório particularmente gravoso, mantido em «segredo de justiça» há 45 anos, sobre as prisões e sevícias praticadas pelo PCP e a extrema-esquerda no «verão quente» de 1975 no momento exacto em que o dito PCP cumpria o seu centenário. Com efeito, só depois do contragolpe do 25 de Novembro no mesmo ano é que foi aberto o caminho à consolidação democrática do novo regime com a Constituição de 1976, a qual continua contudo a nunca ter sido referendada, como sucede também com os acordos com a União Europeia. Entretanto, o governo prepaa-se para sobreviver graças aos biliões de euros a transferir pela UE a fundo perdido…

Acontece, porém, que uma vez reeleito, o PR entendeu dar mais um passo e não hesitou em anunciar ao governo e ao público em geral a criação de uma espécie de gabinete presidencial para controlar os futuros gastos do «Plano de Recuperação e Resiliência», como o «Expresso» assinala. Quanto ao «Público», procura minimizar a dimensão da intervenção presidencial mas não esconde a criação de departamentos inéditos na «Casa Civil» presidencial com vocação manifestamente governamental, tais como os do «Desenvolvimento Institucional Sustentável», «Desenvolvimento Humano e Social Sustentável» e «Desenvolvimento Económico Sustentável». Signifique essa sustentabilidade o que significar, o governo fica a saber que tem o PR a vigiá-lo!

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Com anunciada predominância sobre o governo em vastas áreas mas aparentemente sem pesos pesados dotados de formação financeira e económica, ainda não se trata de um governo paralelo, mas vai-se aproximando. Seja como for, nunca um PR anunciou desta forma claríssima a intenção de «um acompanhamento tão próximo» quanto possível da actividade governamental corrente. E não só em domínios programáticos como os citados mas também financeiros, nomeadamente no domínio da «luta contra a corrupção», sem dúvida de esperar neste tipo de projectos, nomeadamente na construção civil (os termos entre aspas são, segundo o «Expresso», do próprio Presidente)!

Entretanto, o PR, eleito folgadamente à primeira volta com a bizarra ajuda de António Costa publicitada em digressão governamental, entendeu relançar a sua base social católica, idosa e conservadora, no caso reforçada por parte do PCP. Para tanto, remeteu para o Tribunal Constitucional o decreto sobre a eutanásia, arrancado ao parlamento por muitas deputadas e deputados que se consideram «modernos». Ora, conforme a composição do Tribunal, este aceitará ou não as críticas do constitucionalista que é o PR, remetendo eventualmente para as calendas gregas este «osso» oferecido pelo esquerdismo puramente ideológico da generalidade dos deputados do PS e do BE a um governo crivado de dificuldades sem oposição capaz mas reduzido a uma dimensão clientelar!

António Costa seguramente já tomou consciência que a terrível acumulação da crise sanitária e da crise sócio-económica, as quais já custaram uns 20 mil milhões de euros ao PIB mais o agravamento da dívida, faz com que a descriminalização da eutanásia mais não seja do que uma acha para a fogueira onde o governo arde há um ano, digam as sondagens o que disserem! São questões de legitimidade moral e pessoal que não se medem facilmente e que o «esquerdismo» de algo como a eutanásia pode alienar muita gente. É este o concurso que o PR se propõe ganhar sem dificuldade daqui até ao fim do mandato do PS dentro de dois anos e meio, se não for antes.