O Café Dias em Alcântara tem a melhor meia de leite de Lisboa. Quem chegar em hora de ponta, para beber uma ou para provar os fantásticos salgados, poderá ver um espaço cheio e esperar um pouco para poder aceder aos pastéis de nata (sim, também são muito bons) e poderá, de repente pensar, que o Pedro (o dono que recebe todos com um sorriso sincero e sempre disponível) não é competente, nem resiliente. Acontece, que, ao contrário do que pensa a senhora ministra da saúde, ao Pedro não lhe falta resiliência, falta-lhe mão de obra que trabalhe ao seu lado e meios que o Estado não lhe dá.

Resiliência, demissões e como ofender uma classe em 10 segundos

Quando esta semana ouvi Marta Temido afirmar (eu usaria a expressão ofender) que a “resiliência” deveria ser tão importante “como a competência técnica” no processo de contratação de novos médicos, pensei precisamente no Pedro e em todos os “Pedros” de Portugal. Só alguém que está profundamente desorientado, desgastado e sem noção da realidade é que pode ofender desta maneira os profissionais de saúde e os portugueses.

Não consigo deixar de salientar, também, o papel, mais uma vez, do senhor Presidente da República. Num registo ao qual já nos habituou, Marcelo veio, publicamente, afirmar que “tudo o que seja crise no setor da saúde é indesejável” e saudar o Governo por ter decidido “reforçar os meios”. Confesso que já me custa classificar o papel do nosso Chefe de Estado. Não era saudável uma crise política por causa da Covid em 2020, não podíamos ter uma crise de orçamento há um mês pela economia e pelas pessoas, agora não podemos ter uma crise na saúde porque há a Covid outra vez, embora em menor escala.

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No último mês assistimos a demissões nos hospitais de Braga, Setúbal e Lisboa. Os profissionais de saúde não se demitiram, nem recuaram, quando o país foi assolado pela Covid, não saíram dos seus postos de trabalho e do apoio direto aos portugueses quando as urgências e os cuidados intensivos foram invadidos por pedidos de auxílio de cidadãos infetados pela pandemia. Não, Senhora Ministra, nesse momento, os nossos profissionais de saúde foram resilientes e corajosos, porque mesmo com pouca informação e enorme risco para a sua saúde, e saúde das suas famílias (muitos as deixaram nessa altura), se mantiveram na linha da frente.  Não olharam a horas seguidas de trabalho, a dias seguidos sem folgas, ao facto de terem as suas férias anuladas e adiadas. Não olharam a condições difíceis do desempenho do seu trabalho em covidários pelo país fora. Não se questionaram quando os doentes eram em número e complexidade mais do que alguma vez alguém pensou ser possível.

Tanta vez duvidaram das suas próprias capacidades. Ultrapassaram tudo em equipa. Sempre em prole do doente.

A resiliência na primeira pessoa

 

O que a Senhora Ministra não sabe, porque não faz parte da classe, é que no cartão da ordem dos médicos vem escrito: “A saúde do meu doente será a minha primeira preocupação” Hipócrates. Nunca ninguém duvidou disto quando fez o seu juramento. Nenhum médico deverá trabalhar com um foco diferente.

O SNS não precisa de uma palmada nas costas, precisa de ser defendido com unhas e dentes por quem deve. Precisa no mínimo de não ser ofendido. Questiono qual a intenção? A emigração? A debandada para o sistema privado? Qual a motivação de um médico em ficar no SNS se não for o acreditar no sistema que o formou?

Estes mais de 18 meses de pandemia trouxeram-nos caos nas urgências e nos serviços. Quem não se recorda de ver ambulâncias com doentes que não conseguiam entrar nos serviços de urgência por estarem assoberbados? Quem não se recorda das vagas em que o sistema privado não recebia doentes com COVID, por decisão ideológica de quem governa, e foi o SNS teve que inventar soluções e recursos onde já não existiam, para receber e cuidar todos esses doentes. O SNS são as pessoas que o fazem, e esse sacrifício, todos esses sacrifícios de todos estes anos são dos médicos e dos outros profissionais de saúde, que agora, em exaustão e desrespeitados, denunciam um sistema em crise profunda.

As desculpas não se pedem evitam-se, a confiança, essa, cria-se através das atitudes. Os médicos, tais como os outros profissionais de saúde, não deixaram, nem deixarão nenhum doente para trás, não pela sua resiliência, mas porque é essa a sua fibra.

Mais médicos, mais meios e menos ideologia

Numa só semana, ouvimos o Governo comunicar que é necessário contratar mais professores e ter mais médicos. Esta estranha urgência chega após seis anos de governação estável e suportada numa maioria parlamentar de coligações informais em que, aparentemente, não se atuou sobre o problema. A acusação feita aos médicos de Setúbal, assumindo que o seu comportamento afasta quem poderia vir para o SNS, lembra o treinador que culpa os jogadores depois de não lhes dar condições de treino e as táticas certas para vencer.

O despedimento em massa é um ato pensado e custoso. Da maneira que foi retratado, até parece que foi feito de ânimo leve, como se estivéssemos a falar de crianças.

Nunca um sistema nacional de saúde foi gerido com tanta ideologia, com uma ausência de ligação às potenciais sinergias com o privado e à melhoria de oferta e da organização dos seus serviços. Assistimos à degradação do sistema, das condições dadas aos seus profissionais e, em consequência, ao serviço prestado aos utentes.

Não ignoremos que Portugal tem um serviço nacional de saúde mais próximo dos cidadãos e mais acessível que a maioria dos países, mas isso não deve, nem pode, servir de justificação para que não se encare o estado a que o mesmo chegou.

É fundamental refundar um sistema que sofreu golpes letais com esta pandemia, um sistema que deixou à vista insuficiências gritantes e que, acima de tudo, falhou com os seus profissionais e com os seus beneficiários: os portugueses. Não podemos confundir o combate à pandemia com os milhares de consultas, cirurgias e diagnósticos adiados. Um país deve ter pilares fundamentais: saúde, segurança e ensino. Algo está profundamente errado quando o Estado deixa ruir um desses pilares. Depois de ouvir a senhora ministra e o senhor ministro da educação, temo que já tenhamos dois pilares em colapso.

A resiliência poderá mesmo ser a solução, a resiliência de todo um povo para os tempos que se adivinham, a resiliência de todos, dos médicos, dos professores e dos “Pedros”.