Era desta vez que todos esperávamos que os deputados se debruçassem sobre o que de facto levou a CGD a declarar perdas superiores a cinco mil milhões de euros, 40% das quais com origem em créditos concedidos entre 2005 e 2007. São números públicos que podem ser encontrados no Relatório e Contas da CGD de 2016 na página 521.
Juntemos, a esses dados públicos, o que se sabe da operação Marquês. Acrescentemos a informação sobre os procedimentos divulgados pela auditoria da Ernst & Young. Moderemos as nossas conclusões levando em conta que o risco de crédito da banca era avaliado de forma menos estrita do que hoje, que se vivia em euforia financeira, que a CGD era usada como instrumento de política económica e que depois chegou a mais grave crise desde 1929.
Tudo isto ponderado restam-nos basicamente quatro casos de concessão de crédito que merecem especial atenção: o financiamento a Joe Berardo para comprar acções do BCP que se mistura com a altura em que a sua colecção de arte entrou para o CCB; o negócio de Vale do Lobo onde a CGD entra como acionista e financiadora e sob o qual existem suspeitas de corrupção no processo Marquês; o empréstimo a Manuel Fino para entrar na Cimpor e, finalmente, o mais ruinoso de todos os projectos, o caso da Artlant que tem de ser visto em conjunto com a empresa catalã La Seda onde a CGD passou a ter 14,7% do capital que manteve até à sua insolvência.
As atas da Caixa agora divulgadas pela revista Sábado revelam que o actual governador do Banco de Portugal esteve presente em Conselhos de Crédito que tomaram decisões sobre três dos quatro casos: os financiamentos a Joe Berardo, a Vale do Lobo e a Manuel Fino. Eis se não quando este facto se transforma no mais importante da Comissão parlamentar de inquérito que ainda não se estreou, com todos os partidos – com excepção do PCP – a concentrarem as suas atenções nesse assunto. O governador revelou que pediu escusa de participar nas decisões do Banco de Portugal sobre a CGD, numa sucessão de notícias que pecaram por tardias, já em reacção à notícia da Sábado.
O caso que ficou de fora, o da Artlant/La Seda, acaba por entrar também pela administração adentro do Banco de Portugal por via da vice-governadora Elisa Ferreira. Casada com uma das pessoas que esteve envolvida no lançamento do projecto Artlant, em conjunto com a La Seda, acabou por ser a própria vice-governadora que abriu essa porta, ao aceitar responder ao desafio que lhe colocaram – neste caso pelo PSD – e responder à pergunta da sua eventual incompatibilidade e necessidade de pedir também escusa. Entrou no jogo ao dizer que as datas não coincidem e as datas afinal coincidem.
Recorde-se que CGD começou por entrar no capital da La Seda em 2006 (com 5% no Verão desse ano) antes de ser credora também da empresa catalã e usando esta via para, em conjunto com o grupo Imatosgil influenciar a localização da fábrica que veio a ser a Artlant. Fernando Freire de Sousa foi administrador da La Seda em 2006 e 2007 (como se pode ler aqui, na pré-publicação do livro que escrevi, podendo aqui ler-se um direito de resposta de Manuel Matos Gil).
Como já percebemos, meio mundo das nossas lideranças esteve envolvido nos negócios ruinosos da CGD. Uns por acção, outros por omissão. Mas há uns que estiveram mais envolvidos do que outros. E não foram com certeza nem Carlos Costa nem Elisa Ferreira. Se os deputados quiserem transformar mais esta comissão parlamentar de inquérito numa nova caça ao governador ou à administração do Banco de Portugal, vamos assistir a mais um exercício inútil de apuramento de responsabilidades políticas.
Não é a primeira vez que os problemas da banca se viram contra o governador do Banco de Portugal. Vítor Constâncio, o antecessor de Carlos Costa, também foi um dos alvos preferidos na altura do caso BPN. A diferença está nos partidos. Com Constâncio era o CDS, com o então deputado Nuno Melo como protagonista, que transformava tudo em “culpas de Constâncio”. Actualmente é o Bloco de Esquerda, com Catarina Martins e Mariana Mortágua, que resumem boa parte dos acontecimentos da banca em “culpas de Costa”. Foi assim com o BES, está a começar a ser assim com a CGD.
Há, no entanto, uma grande diferença entre o que se passou com Vítor Constâncio e o que se está a passar – ou se advinha que irá passar – com Carlos Costa. O PS defendeu sempre Constâncio e conseguiu mesmo nomeá-lo para vice-presidente do BCE, ao ponto de ter assumido a área da supervisão quando o banco central do euro ficou também com essas funções.
Carlos Costa, em contrapartida, tem tido o condão de unir a classe política. O PSD, que parecia estar mais recuado, apareceu, pela voz do seu líder Rui Rio, a afirmar que o governador deve tomar a iniciativa de sair se aprovou créditos ruinosos na CGD. Só o PCP se mantém – pelo menos por enquanto – recuado. Todo o processo começa por iniciativa do BE pela voz de Mariana Mortágua, seguida pelo CDS, logo prosseguida pela frase terrível de Carlos César na TSF: “todos, provavelmente até o próprio, anseiam por esse momento” de fim do mandato do actual governador. E fechou-se o círculo com Rui Rio.
Ninguém está disponível para defender Carlos Costa. O seu mandato chegará ao fim com a ansiedade descrita por Carlos César, se resistir e porque dificilmente a sua exoneração passará no BCE. O governador do banco central da Letónia, acusado de ter recebido dinheiro de um banco, está a ser defendido pelo BCE como se pode ler no Expresso Diário (para assinantes). Mas terminará o seu mandato sem qualquer apoio e muito menos sem a saída que o PS acabou por dar a Vítor Constâncio. Estamos a caminho de ver Carlos Costa transformado no responsável do buraco da CGD com total desprezo pelos factos.
Para quem gosta de teorias da conspiração, o que se está a passar, na ausência de racionalidade, tem terreno fértil para muitas e variadas interpretações. Podemos pensar que estamos perante uma guerra de sucessão – o mandato do governador acaba na Primavera de 2020 – e há vários sucessores. Esta é a teoria da conspiração que melhor se adapta ao facto de Elisa Ferreira, a melhor posicionada para a sucessão, ter sido também transformada num alvo. A segunda teoria da conspiração está inevitavelmente ligada ao colapso do BES. A ser uma realidade que Ricardo Salgado era o Dono Disto Tudo, não se deixa de ser o DDT de um dia para o outro. E sabemos como hoje se começam a reconstruir narrativas sobre o que era o BES quando colapsou – esquecendo-se que estava de facto falido e que Ricardo Salgado tinha ocultado um buraco de 1200 milhões de euros na ESI, confessados no próprio prospecto de aumento de capital na Primavera de 2014.
Ser governador do banco central já teve de facto melhores dias. Além da Letónia, esta semana assistimos na Itália a um ataque cerrado ao banco central, assim como ao supervisor da bolsa. Mateo Salvini, defendeu esta semana que os dois reguladores deveriam ser reduzidos a zero. “Mais do que mudar uma ou duas pessoas, deviam ser reduzidos a zero”. Disse, considerando-os uns fraudulentos que deveriam ir para a prisão. No mesmo sentido foi o seu colega de coligação Luigi de Mario ao afirmar que não se pode pensar em manter as mesmas pessoas à frente do banco central “se pensarmos em tudo o que aconteceu nos últimos anos”. Também nos EUA, Donald Trump atacou a Reserva Federal.
Ser banqueiro central começa a ser um cargo perigoso. Ou antes, só pode atirar-se para banqueiro central quem considerar que tem um bom e eficaz escudo político-partidário. O preço a pagar será obviamente menos independência. É um regresso ao passado, de bancos centrais controlados por quem governa. Na área do euro já pouco importa, nos outros países não é bem assim.