Eu percebo que estamos todos cansados de trabalhar em condições e com remunerações que não são as ideais. Sei que a todos os níveis do Estado as cativações são um constante irritante. Não coloco em dúvida o patriotismo, empenho e brio da esmagadora maioria dos militares que fazem o máximo com os meios disponíveis. Não duvido da importância de reforçar o investimento público em setores estratégicos, como a Defesa. Mas nada disso pode levar a desvalorizar a gravidade de alguns elementos da guarnição do navio-patrulha Mondego da Marinha portuguesa – comprado à Dinamarca e ao serviço desde 2016 – terem recusado uma ordem, impedindo o cumprimento duma missão. É grave para as nossas Forças Armadas. É grave para a nossa imagem externa. É grave para a nossa democracia e o princípio da tutela civil sobre as Forças Armadas.

Um caso sério e raro

Na história militar, a recusa de cumprir uma ordem é caso raro e da maior gravidade. Como bem sublinhou o chefe máximo da Marinha, Almirante Gouveia e Melo, foi posta em causa uma condição basilar do bom funcionamento das Forças Armadas em qualquer parte do Mundo: a disciplina. Afirmou ainda na sua alocução à tripulação em causa: “a Marinha não envia os nossos navios e guarnições para missões impossíveis! Não colocamos em risco as nossas guarnições de forma fútil.” Evocando a longa história do mais antigo dos Ramos declarou ainda: “não nos são conhecidos casos de acidentes”, o que é um facto, pelo menos em termos de casos recentes e sérios. Sublinhou também que esta recusa pode minar a nossa credibilidade externa como aliado fiável nos seus contributos para a nossa defesa coletiva, garante da paz e segurança na Europa. Não será assim de forma grave ou duradoira se se tratar de um episódio isolado. Mas, por isso, é fundamental garantir que não se repete, que não se desvaloriza o sucedido.

A história militar é clara. Uma missão militar cumpre-se, mesmo que se discorde, mesmo que represente um sério risco de vida. O que, aliás, é frequente em missões de combate. Se há divergências, elas podem ser manifestadas, disciplinadamente, nos termos e lugares próprios, e até registadas para memória futura. Há exceções? Sim, os militares num Estado democrático podem e devem recusar cumprir uma ordem manifestamente ilegítima ou ilegal, por exemplo para levar a cabo um golpe de Estado ou para massacrar civis. Mas isso são situações extremas que confirmam uma regra quase universal. E é claro que não era de todo o caso. Pelo que vi reportado o pretexto para esta insubordinação foi a avaria de um de vários motores do Mondego, eventuais infiltrações e um alegado risco de incêndio. Mas, por exemplo, se um vago risco de incêndio fosse razão para não executar missões navais, já não havia marinhas, são dos acidentes mais frequentes na história naval. Aliás, a Marinha dá formação específica para evitar comprometer missões com pequenas avarias. Ninguém defende que se coloquem navios e, sobretudo, marinheiros em risco, mas não temos nenhuma razão para acreditar que fosse o caso.

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Porquê agora?

Há, aliás, um aspeto importante que não está claro. Parece, lendo as notícias, que os promotores desta insubordinação alegariam que os problemas já existiam e já deviam ter sido resolvidos. O que levanta a questão: o que mudou para decidirem, agora, recusar seguir um navio russo? É preciso perceber se já tinham executado outras missões nas mesmas condições. Se sim, este caso torna-se bem mais grave. Significa que terá havido a tentativa de criar uma espécie de comité ou soviete de marinheiros usurpando a autoridade para decidir que missões executava ou não.

Não é uma questão de orçamento

O ponto fundamental neste caso não é o nível de investimento em defesa. Estou à vontade para o dizer. Não descobri o tema agora. Várias vezes aqui escrevi sobre ele. Mas tenho lido muitos disparates a este respeito. Passámos dias indignados com haver carros de combate, vulgo tanques, Leopard2, armazenados. Na altura, recordei que nenhum país tem os seus meios 100% operacionais, 100% do tempo. Porquê? Há reservas de guerra – os EUA, a Rússia têm milhares de tanques em armazém. Este meio não era o mais adequado para as missões prioritárias que as tropas portuguesas executaram nos últimos anos. Além de que também é preciso fazer manutenção. Agora vemos o mesmo coro de vozes indignadas por haver um navio que, com pequenas avarias, continua operacional, dizem que devia estar a fazer manutenção. Devia? Eu não sei, o que sei é que cabe aos serviços competentes da Marinha decidir isso, e não ao Twitter.

Sim, Portugal deve investir mais em defesa, pois é um seguro contra todos os riscos, como se viu na pandemia. Sim, devemos aproximar-nos com o máximo de rapidez possível dos 2% do PIB e dos 20% de investimento com que todos os membros da Aliança Atlântica se comprometeram em 2014. Vivemos num Mundo em rearmamento acelerado e cada vez mais perigoso. Mas não é verdade que não tenha havido já algum esforço para reforçar o investimento em defesa. Segundo a NATO ele aumentou 25% de 2014-2022. Infelizmente, aqui, como na maioria dos Estados europeus, a partir duma base muito baixa. Mas a essência da estratégia é mesmo promover prioridades estratégicas com meios sempre limitados.

Não aos sovietes de soldados e marinheiros

Qual foi a autoridade máxima que foi desafiada e usurpada neste caso? No topo da hierarquia militar, numa democracia, não está o comandante de navio ou o chefe de estado maior, estão os eleitos pelo povo. Está o parlamento e o governo por ele nomeado, está o Presidente da República. Num regime democrático só pode haver tolerância zero para assembleias de soldados ou marinheiros a decidirem quando e onde se emprega meios militares. Isto não é um detalhe.

A tutela do poder civil eleito sobre a hierarquia militar é um dos pilares da democracia. Cabe exclusivamente ao parlamento, eleito por todos nós, e ao governo por ele escolhido, definir as grandes prioridades estratégicas nacionais e distribuir os meios orçamentais disponíveis por cada uma delas. Desculpar ou desvalorizar o que se passou, permitir que se normalize esta insubordinação, seria fatal para a disciplina das Forças Armadas. Seria também fatal para a subordinação dos militares ao poder civil democraticamente eleito. Não podemos voltar ao modelo dos Soldados Unidos Vencerão, os notórios SUVs, do tempo do PREC. Admitir sovietes de marinheiros e soldados seria fatal para a eficácia das Forças Armadas na execução das suas missões, mesmo com mais investimento em defesa, e não seria menos fatal para a nossa democracia.